Desde que dominou o fogo o homem
assumiu o topo da cadeia alimentar, embora vez ou outra um leão desavisado ou
um tubarão distraído se deliciem com carne humana. Faz mais de 1,5 milhão de
anos.
Talvez por isso o
desenvolvimento da inteligência artificial assuste tanto a alguns, como se
estivéssemos prestes a entrar numa fita do Zé do Caixão – é o risco de sermos
passados para trás.
Já há quem sonhe com um robô de
três metros de altura, com a pele de metal polido brilhando e olhos feitos de
cristal vermelho, dizimando a raça humana como num conto de H.P. Lovecraft.
Pessoas que ganham a vida com a
criatividade – escritores, músicos – temem perder espaço para um punhado de
circuitos capazes de fazer histórias tão ruins quanto as histórias ruins que
eles fazem. As histórias boas vão continuar precisando de uma centelha que a
eletricidade ainda não produz. E isso vale para todo ramo do conhecimento.
Há pouco o mundo teve acesso a
um milagre da inteligência artificial na forma de uma canção dos Beatles que,
com a morte de John Lennon, estava confinada a uma fita cassete em gravação de
péssima qualidade. Anos atrás os três remanescentes tentaram trabalhar na
canção, mas a tecnologia da época não permitia a separação e recuperação da
voz, alcançada somente agora, graças à inteligência artificial.
O resultado emociona. Não pela
música em si, produção menor de Lennon, mas pela possibilidade de se ouvir
novamente a voz dele, aliada à guitarra de George Harrison gravada naquela
tentativa anterior e aos outros companheiros, vivos. McCartney cria uma linha
de baixo arrebatadora e Ringo faz o que faz de melhor – o toque reto.
Hoje é possível pedir a uma
inteligência artificial que componha e grave uma canção “no estilo” dos
Beatles. Ou de qualquer artista. Mas ela sempre será produto reciclado, criada
a partir do que foi feito anteriormente, sem a centelha que transforma o simples
no divino.
Que ninguém espere um computador
criando um tema como a Suíte para Violoncelo Solo nº 1, de Bach.
Para isso os desenvolvedores terão que gastar muito fosfato, que vem do fósforo
e que não está presente na composição dos circuitos eletrônicos, mas é o
segundo mineral em maior quantidade em nosso corpo.
Os médicos parecem bem mais
empolgados com o uso da inteligência artificial, que vem revolucionando
diagnósticos e tratamentos de diversas doenças e principalmente na redução de
erros médicos por causa da imensa capacidade de análise de dados.
Diante desse mundo novo, Delmo
se assusta. No bar, passou a enumerar as coisas que viu nascer e morrer. Ainda
se surpreende com o que as pessoas dizem fazer com um telefone portátil que ele
se recusa a usar – “todo mundo sabe onde eu ando”, diz.
Prefere continuar indo ao banco
para tirar extrato, apalpar e cheirar o que está comprando e virar a página do
livro molhando o dedo de saliva. E arremata: “O problema da vida moderna é que
ela tem muito de moderna e pouco de vida”. Taí. Que inteligência artificial
criaria uma tirada como esta?