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Privatização da censura: adotada por Lula e Moraes, estratégia sofre derrotas nos EUA

Privatização da censura: adotada por Lula e Moraes, estratégia sofre derrotas nos EUA

Cresce no Brasil a associação entre governo e empresas de tecnologia para suprimir ou remover conteúdo na internet, a exemplo do acordo formalizado recentemente entre o governo Lula e as redes sociais.

Nos EUA, prática idêntica, também envolvendo recomendações de censura do governo às plataformas, é objeto de litígio no processo denominado Murthy vs. Missouri. Todas as instâncias judiciárias americanas que já atuaram no processo até o momento entenderam, em sede de liminar, ter havido provável censura estatal pelo governo federal, ilícita à luz da Constituição do país. A Justiça chegou a conceder liminar proibindo contatos de agentes públicos com as plataformas de rede social, para impedir que a censura volte a se repetir.

Acordo entre governo brasileiro e as plataformas: No Brasil, no dia 20 de maio, o governo Lula, representado pelo advogado-geral da União Jorge Messias, assinou protocolo de intenções com os representantes das redes sociais TikTok, Facebook, YouTube, Kwai, LinkedIn e X (antigo Twitter). Foi pactuada a “realização de reuniões”, o “intercâmbio de conhecimentos” e a “atualização das partes sobre ações específicas sendo desenvolvidas” no sentido de “enfrentamento à desinformação” sobre a calamidade no Rio Grande do Sul. As redes sociais se comprometeram a “tomar medidas com relação a conteúdo”, conforme seus termos de uso; presumivelmente, remover conteúdos apontados como “desinformação” pelo governo.

No contexto das enchentes no Rio Grande do Sul, chegaram a ser rotulados como fake news por órgãos federais informações difundidas pelas redes sociais que depois se revelaram essencialmente verdadeiras. Além disso, conforme apontado por juristas, o governo Lula rotulou como “desinformação” e encaminhou para investigação pela Polícia Federal inclusive conteúdos meramente opinativos, críticos em relação à atuação do governo na gestão da calamidade.

Nos Estados Unidos, ao contrário do Brasil de agora, a colusão entre órgãos do governo federal e as redes sociais, com os primeiros indicando às segundas conteúdo para ser removido, teve caráter extraoficial e foi feita longe dos olhos dos público.

Privatização da censura: Jenin Younes, advogada especializada em liberdades civis que litiga no caso, explica à reportagem que a Constituição americana proíbe apenas o Estado de restringir a liberdade de expressão dos cidadãos, deixando livres as empresas privadas (como Facebook ou YouTube) para removerem conteúdo dos usuários.

No entanto, Younes explica que, há anos, a jurisprudência do país entende que o governo é proibido de fazer indiretamente, por intermédio de empresas privadas, o que ele próprio seria impedido pela Constituição de fazer diretamente. Do contrário, argumenta a advogada, nenhuma restrição ao governo seria efetiva, na medida em que ele poderia sempre recrutar entes privados intermediários para contornar a proibição constitucional.

No Brasil, à semelhança dos Estados Unidos, empresas privadas têm maior liberdade de atuação que o Estado. No caso específico da remoção de conteúdo em redes sociais, o Marco Civil da Internet prevê que terceiros, inclusive o Estado, só podem obter a remoção de postagens alheias mediante ordem judicial; já as próprias redes sociais são relativamente livres para remover o conteúdo por conta própria, sem o devido processo legal e sem a necessidade de que o conteúdo tenha violado qualquer lei.

Assim, também no Brasil, a eventual instrumentalização da moderação de conteúdo privada pelo Estado poderia, em tese, resultar em censura sem freios legais.

Caráter supostamente voluntário: Assim como o governo Lula no texto do protocolo de intenções, o governo americano alega que suas interações com as plataformas tiveram caráter de mera recomendação, que elas cumpriam apenas voluntariamente.

O argumento não convenceu o Tribunal de Recursos da 5ª Região (Fifth Circuit Court of Appeals), segundo o qual a “escolha de palavras e tom” das mensagens reveladas nos autos devem ser levados em conta para fins probatórios. O tribunal considerou haver relação de direção e coerção, citando a linguagem ríspida empregada pelos agentes, o tom demandante e a presença objetiva de ameaças veladas, assim como a postura subserviente das plataformas (que acatavam as indicações de censura, reconheciam suposto débito moral seu e se desdobravam para agradar os órgãos federais, chegando a mudar suas políticas internas e até mesmo criar um canal prioritário para recebimento de denúncias pelo governo).

“Dado o desequilíbrio de poder, não é possível conceber voluntariedade”, argumenta Younes.

No Brasil, como revelado pelos “Twitter Files”, as plataformas de rede social também frequentemente adotam a política de cumprir espontaneamente ordens emanadas de órgãos públicos, independentemente de sua legalidade. Fontes internas ouvidas pela Gazeta do Povo explicam que os departamentos jurídicos das empresas do ramo enxergam essa prática como parte do princípio da preservação da empresa – o que, na visão delas, inclui manter boa reputação com o poder local nos países em que atuam.

O fantasma da regulação: O jornalista Glenn Greenwald, ao comentar o caso em seu programa, relatou que, ao longo de sua carreira, já recebeu múltiplos contatos de agentes do governo americano pedindo a não publicação de certos conteúdos em nome do interesse público. Ele enfatiza o acanhamento dos agentes nesses contatos e o contrasta com o tom de supremacia hierárquica dos agentes ao indicar censura às plataformas de rede social.

Segundo Greenwald, esse contraste se explica pelo fato de que, enquanto a imprensa escrita é livre, as plataformas de rede social estão permanentemente sujeitas à ameaça de regulação. Segundo a Justiça americana, essa ameaça foi veiculada diversas vezes às plataformas de forma velada, para pressioná-las a censurar conteúdos, e também explicitamente, em manifestação pública da presidência.

Nesse ponto, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, o maior temor das plataformas envolve a revogação das regras que atualmente as isentam de responsabilidade jurídica pelo conteúdo postado pelos usuários. Essa revogação, por si só, imporia às plataformas grande custo financeiro.

Ameaças contra plataformas: No Brasil, além da ameaça regulatória, pairam outras ameaças sobre as empresas.

Ao assinar o protocolo de intenções com as plataformas no dia 20 de maio, o advogado-geral da União pontuou: “o que sai daqui hoje é um modelo novo de trabalho. E é um modelo que a gente sempre apostou, o modelo do diálogo”, parecendo deixar implícito que haveria outro modelo, coercitivo, para levar as plataformas a removerem conteúdo contra o governo considerado por ele próprio como “desinformação”.

Possivelmente o ministro se referia às notificações extrajudiciais que vinham sendo enviadas pela AGU nesse sentido (consideradas ilegais por juristas ouvidos pela Gazeta do Povo), que constituem, por natureza, ameaça de processo judicial, ou ainda, a outras atuações da AGU, que, em abril, cogitou pedir a suspensão ou dissolução do X (antigo Twitter) no Brasil – justamente uma das redes sociais que assinaram o acordo em maio.

Em 10 de abril de 2023, o então ministro da Justiça Flávio Dino (atualmente ministro do STF), em reunião com representantes das principais redes sociais, foi mais explícito, ameaçando medidas criminais contra as plataformas, conforme vídeo obtido pelo jornal Metrópoles: “Se os senhores não mudarem os termos de uso, vocês [sic] vão ser obrigados. [...] Esse tempo da autorregulação, da ausência de regulação, da liberdade de expressão como um valor absoluto, [...] esse tempo acabou no Brasil. [...] Eu tenho certeza que essa colaboração ocorrerá. Em não ocorrendo, é claro que quem se opuser a essa ideia de colaboração obviamente está se expondo a que nós adotemos as providências.”

Precedente do Telegram: O acordo da AGU com as plataformas para “enfrentamento à desinformação” não foi o primeiro do seu gênero no Brasil: em maio de 2022, o TSE também formalizou parceria com o Telegram que envolveria o tribunal indicar conteúdo “desinformativo” para que o aplicativo, de forma supostamente espontânea e conforme os próprios termos de uso, tomasse medidas contra o conteúdo. À época, o TSE se anunciou em tom positivo como sendo “o primeiro órgão eleitoral no mundo a assinar um acordo com a plataforma que envolve cooperação e ações concretas”.

No entanto, o “acordo”, apesar do nome dado pelo TSE, foi explicitamente fruto de coerção.

Em março de 2022, o ministro Alexandre de Moraes (então vice-presidente do TSE, mas atuando em processo do STF), tinha determinado o bloqueio do Telegram em território nacional. Apesar de o bloqueio ter sido motivado pelo descumprimento de uma ordem de bloqueio de perfis envolvendo Allan dos Santos, o ministro não se contentou com o cumprimento da ordem para desbloquear o Telegram, exigindo, além disso, o cumprimento de outras medidas por ele determinadas. Elas incluíam que o Telegram “informasse” ao juízo as “providências adotadas para o combate à desinformação”, muito embora não existisse previsão em lei brasileira de que o aplicativo tivesse de adotar prática do gênero.

No dia seguinte, o ministro se deu por satisfeito com a resposta do Telegram e o aplicativo foi desbloqueado. Menos de dois meses depois, em maio, o Telegram assinou o “memorando de entendimento” se comprometendo a cooperar com o TSE no combate à “desinformação”.

Em palestra proferida dias depois do acordo, o ministro afirmou que “o Telegram só assinou convênio com o TSE [...] porque ele ia ser bloqueado.” O ministro completou: “Ele seria bloqueado? Seria”, possivelmente pretendendo dizer que não teria desbloqueado o aplicativo no país se não tivesse assinado o convênio.


Hugo Freitas, Foto: Foto: Eli Vieira com Dall-E - especial para a Gazeta do Povo




 

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