Celso Amorim, o supra-chanceler do Brasil, disse que a
democracia na Venezuela está consolidada. O seu chefe, o presidente Luiz Inácio
Lula da Silva, fingiu-se assustado com as declarações do ditador Nicolás Maduro
sobre haver o risco de um banho de sangue no país se não for mantido no poder.
O presidente Lula, por sinal, é possivelmente aquele
que mais evoca uma anomalia para dizer que a Venezuela é uma democracia
pujante, com “mais eleições” que o próprio Brasil.
O que o presidente brasileiro não sabe - ou faz
parecer não saber - é que os eventos de massa que envolvem milhões de pessoas
na Venezuela não são eleições de fato. Esta coluna já tratou sobre este tema
que retomo aqui com três perguntas.
É possível chamar de “eleição” um processo no qual o
incumbente controla todas as instâncias dos poderes? Que entre as medidas de
contenção dos opositores prende, exila, inabilita e até espanca?
Dá para levar a sério um processo em que eleitores são
coagidos por forças paramilitares a votar e a como votar?
Mesmo assim, todo mundo chama o teatro de Maduro (e de
diversos outros autocratas) de eleição, por vício do conceito. Por acreditar
que a “eleição”, aos moldes deles, é de fato a eleição, um dos elementos das
democracias. Uma confusão que serve apenas aos autocratas.
Há muitos cenários possíveis com a divulgação do
resultado do simulacro de eleição na Venezuela. Nenhum deles é bom. Nenhum
mesmo. Escolho dois.
O primeiro cenário: Maduro vence. O ditador sai
triunfante do espetáculo e, como diz Celso Amorim, consolida de vez a
democracia venezuelana. Não haveria motivos para sanções. Todo mundo
interessado em fazer um bom dinheiro na Venezuela estaria livre para ajudar a
reconstruir o país e faturar. Parece lindo, mas a Venezuela, sob o chavismo, se
transformou em uma realidade avessa a qualquer institucionalidade ou lei.
Maria Corina, a líder opositora, já inabilitada
politicamente por um processo surreal – sem provas ou sequer uma acusação clara
–, vai para prisão ou exílio. Quem quer que se associou a ela, mais
proximamente, também entrará para a lista daqueles que deverão ser varridos do
mapa.
Em 2018, quando Maduro esquentou o seu segundo mandato
em um dos processos de simulação eleitoral, mais de 50 países julgaram sua
“vitória” ilegítima, e reconheceram Juan Guaidó, em janeiro de 2019, como
presidente interino que deveria fazer a transição democrática. Não serviu de
nada. Houve muita retórica, agravamento das perseguições, crises e Maduro
seguiu em frente.
É evidente que o mundo saberá que a permanência de
Maduro, e seu regime no poder, é resultado de uma farsa. Mas, qual será a
resposta? A receita de cinco anos atrás, com sanções ao regime e seus membros,
não funcionou. Além disso, nos Estados Unidos, de onde saíram as maiores
pressões contra o regime naquele longínquo 2019, o lobby petroleiro não vê a
hora da Venezuela ganhar o atestado de democracia. O mesmíssimo já auferido por
Celso Amorim.
O povo venezuelano já tomou as ruas em protestos
massivos nos anos de 2014, 2017 e 2019. Mais de 220 pessoas foram mortas, mais
de 11.000 foram presas, e outras milhares feridas gravemente. O mundo assistiu
e torceu por eles. Mas só. Depois de meses sofrendo toda ordem de abusos,
voltaram para casa, sob uma onda redobrada de violência perseguição e pobreza.
Os venezuelanos estariam novamente dispostos a voltar
para as ruas e enfrentar com paus e pedras os militares venezuelanos com seus
blindados? Com os paramilitares armados e sustentados pelo regime? Suspeito que
não. Mas se insistirem, não terão destino diferente dos protestos passados.
O segundo cenário: Maduro perde. As pesquisas são
confirmadas e o ditador, apesar de todo o controle sobre o seu simulacro
eleitoral, não consegue conter a vontade popular que resiste ao medo e as
ameaças (fatores que determinam o voto na Venezuela) e conquista nas urnas – a
despeito de não se tratar de uma eleição de fato – a saída de Maduro, que está
no poder desde 2013.
Mas quando falo, ou falamos de Maduro, vale ressaltar,
estamos nos referindo à cara, ao personagem mais visível de um regime com
estrutura e ramificações profundas que não se rompem da noite para o dia. O
falecido Hugo Chávez (1954-2013) e depois o seu substituto Maduro
criminalizaram o Estado.
O regime é um conglomerado de máfias locais –
políticas e criminais – combinado com organizações de crime organizado
transnacional, e atores estatais externos que usam a Venezuela como ponta de
lança para seus interesses no Ocidente.
Quando Maduro fala em banho de sangue não é uma ameaça
vazia. Uma parcela importante de sua base não funciona segundo as regras da
política
São armados, ensandecidos e sob coordenação de
interesses e atores que não pensariam duas vezes em usar da violência para
garantir seus direitos.
E como a Venezuela não é uma democracia “consolidada”
e muito menos um país regular, ainda que se tire o ditador, não se desmonta o
regime e suas bases. Esses elementos são mais sólidos e duradouros que a figura
do líder.
Em um “subcenário” onde os chavistas não partiriam
para a pancadaria, mas negociam a paz em troca de seus direitos políticos e
negócios ilícitos, vai dar para dizer que a Venezuela entrou nos trilhos?
Por esses dois caminhos que resumem os destinos
possíveis da Venezuela, apesar de uma infinidade de variações dentro de cada um
deles, não há chances de esperar por um final feliz. Nicolás Maduro e o
chavismo sabem que, em um contexto de derrota, em tese, não haveria para eles
uma outra opção além da prisão, exílio ou morte.
Por essa razão, Nicolás Maduro não combina com
eleições. Ele só aceita montar o teatro, assim como nas demais autocracias
eleitorais, para dar aos seus aliados a justificativa minimamente moral para
apoiá-lo. A ficção é para dar legitimidade a discursos como o do Brasil de Lula
e Celso Amorim.