A possibilidade de derrubada da plataforma X no
Brasil, suscitada por uma intimação do ministro do STF (Supremo Tribunal
Federal) Alexandre de Moraes, coloca a ordem jurídica do país em uma
encruzilhada, na visão de juristas, tornando praticamente ilusória a existência
de algumas garantias constitucionais no país.
Moraes exige que o X nomeie um representante no país,
sob pena de suspensão do serviço. A ameaça é vista por juristas como mais um
avanço em direção a um estado comandado pelo poder arbitrário da cúpula do
Judiciário.
As ilegalidades começam pela própria existência dos
inquéritos que perseguem pessoas por manifestações legítimas de opinião, passam
pelo pedido ilegal de censura prévia de usuários da rede e, no caso específico
do mandado de intimação feito na quarta-feira (28), incluem:
A intimação judicial ocorreu por meio de rede social,
o que não é permitido; A intimação foi dirigida a Elon Musk, mas deveria
ser destinada à CEO do X, Linda Yaccarino;
Há desproporcionalidade da medida de suspender uma
plataforma usada como meio de comunicação por milhões de brasileiros por
descumprimento de uma ordem judicial;
A ordem para nomeação de um novo representante legal
da empresa no Brasil ocorreu em circunstâncias que tornam essa exigência
inviável, já que o representante foi ameaçado de prisão pelo próprio STF há
duas semanas;
Houve violação de súmula do Superior Tribunal de
Justiça (STJ) que determina que este tipo de intimação deve ser entregue em
mãos;
Houve violação de tratados de cooperação internacional
sobre como devem ocorrer intimações que envolvam estrangeiros.
Para a consultora jurídica Katia Magalhães, vivemos um
novo patamar de autoritarismo. "É tudo muito novo. Estamos construindo um
novo pensamento jurídico em torno de situações que nunca se imaginaram, para
situações com as quais a gente não tinha deparado até então, e que, a meu ver,
exigem uma coragem dos agentes políticos – em particular, de cada um dos 81
senadores", afirma.
Rodrigo Marinho, mestre em Direito Constitucional pela
Universidade de Fortaleza (Unifor), concorda com o diagnóstico. "É só ver
os países em que o X foi bloqueado: todos eles são ditaduras, todos eles são
regimes totalitários. Estamos caminhando para isso. Felizmente, ainda não é o
Executivo com as Forças Armadas que têm todo esse poder. É um ministro com a
conivência dos demais ministros que tem cometido abusos processuais violentos,
descumprindo a lei e os princípios constitucionais. Acho importantíssima a
manifestação popular pedindo o impeachment deste senhor e de outros membros do
STF nas próximas manifestações de rua marcadas para o dia 7 de setembro",
afirma.
Rafael Domingues, doutor em Direito do Estado pela
USP, diz que o país está numa encruzilhada entre a institucionalidade e o
"decisionismo", isto é, a primazia das decisões de juízes sobre os
procedimentos estabelecidos pela Constituição e pelas leis.
"A falta de institucionalidade está chegando a
tal ponto que o rito processual está se tornando completamente esquizofrênico,
verdadeiramente kafkiano. Isto não se sustenta com o tempo porque é insano. O
decisionismo não se sustenta. Só o institucionalismo se sustenta a médio e
longo prazo. Uma hora, isto tudo vai ruir, mesmo com muita gente fazendo vista
grossa", comenta. "Todos, inclusive os próprios ministros, estamos
correndo riscos incalculáveis, inclusive no que toca à própria preservação da
democracia", acrescenta.
Intimação a X é inválida por diversas razões: A
intimação, segundo os juristas, é inválida sob vários aspectos, a começar pelo
meio inusitado utilizado, uma rede social. Houve, além disso, uma violação de
tratados de cooperação internacional sobre como devem ocorrer intimações que
envolvam estrangeiros. Domingues explica que qualquer intimação ou citação de
pessoa fora do país deve ser feita por carta rogatória ou outro ato de
cooperação dirigido ao país onde a pessoa está localizada – e, em tese, pode
ser recusada pela Justiça daquele país.
Katia Magalhães lembra que, de acordo com o Código de
Processo Civil, a intimação precisa ser feita pessoalmente aos advogados
constituídos. "Aí vem um problema muito sério: há duas semanas atrás, nós
vimos aquela decisão do ministro de impor a retirada de perfis de usuários sob
pena de multa diária exorbitante e prisão da representante legal da empresa.
Qualquer empregador razoável decidiria: 'vou tirar meu escritório daqui'.
Porque deixar um escritório com funcionários aqui seria expor os prepostos do X
a degola, a um risco concreto de prisão", comenta.
Para ela, há nesta circunstância um "fato do
príncipe", conceito jurídico usado para descrever situações em que um ato
de uma autoridade cria uma condição extraordinária que impede o cumprimento de
uma obrigação legal. A obrigação de ter um representante legal, embora exista
na lei, torna-se inviável diante da ameaça de Moraes.
"A empresa estrangeira tem que ter representante
no Brasil? Tem, sim. Agora, há circunstâncias excepcionais em que essa lei não
pode nem deve ser cumprida", afirma.
Outros juristas também se manifestaram sobre o tema
via X. O ex-procurador Deltan Dallagnol criticou o que chamou de "várzea
no Supremo", mencionando que Moraes errou ao chamar Musk de CEO do X, o
que, para ele, é uma prova de que a decisão é mais política do que técnica.
André Marsiglia, advogado especialista em liberdade de
expressão, lembrou que não é totalmente inédito o uso de meios digitais para
intimações, mas que isso deveria ser uma última tentativa e jamais envolvendo
obrigações como a nomeação de um representante.
Ele também lembrou que a súmula 410 do STJ afirma que,
em casos como este, a intimação tem de ser pessoal, entregue em mãos, sob pena
de nulidade. "Ou seja, por qualquer ângulo, a intimação é nula, e qualquer
ordem de suspensão da rede decorrente dela será ilegal", afirmou.