Brasília, anos 70. Época da febre das boates. Opalões
envenenados tocam o terror no Lago Sul. São os pegas do Gilberto Salomão.
Tempos de uma Brasília romântica que não volta mais, mas que deixou muita
saudade.
Os jovens rebeldes que alucinavam na madrugada
turbinados com muito champanhe, bacardi ou cuba libre, hoje já cinqüentões,
certamente lembram com nostalgia de uma época em que fumar Minister era símbolo
de sucesso e que os bolachões de James Brown, Santana e Maceo Parker era o
balanço que fazia a cabeça da galera de uma capital ainda sem identidade
cultural.
Entre os mais antenados, quem não sintonizava a faixa
860, da Rádio Mundial AM, do Rio de Janeiro – que só pegava em Brasília à noite
– para acompanhar os ritmos de boate do famoso Big Boy? E quem nunca foi
desaguar no Sereia, no fim de uma noitada?
O jornalista Wilson Miranda, o Brother, foi um dos
privilegiados que viveram nesse período de uma Brasília que dava o seu jeito
para respirar liberdade, apesar do sufoco da repressão militar. “Cheguei no DF
no finalzinho de 1971, vindo do Rio de Janeiro. Peguei o início da era das
boates”, recorda-se. Brother estudava jornalismo na UnB e teve de se virar para
sobreviver na capital federal. Carioca esperto, o caminho mais curto que
escolheu para arranjar algum dinheiro e se divertir nas noitadas foi o de trabalhar
nos inferninhos do Gilberto Salomão. “Eu me identifiquei de cara com toda
aquela movimentação do Gilberto. Tinha 19 anos e o Gilberto era o único local
onde se concentrava a garotada da época”, relata.
Divisão entre rico e classe média: Negro e de
origem humilde, Brother conta que no início enfrentou discriminação nas boates
do Gilberto Salomão, área que era dominada pela elite. “Havia duas turmas, a da
Kako e da Shalako. Na Kako iam os mais ricos, Nelson Piquet, o Fernando de La
Roque (Carpe Diem), o Collor. E na Shalako ficava a classe média assalariada.
Mesmo na Shalako eles discriminavam os estudantes pobres, que não tinham grana.
A gente dava um jeito e entrava na boate pelos fundos”. (Vídeo ~~~)
Wilson lembra também das espertezas dos empresários da
noite para aumentar os lucros. Em todas as boates havia macetes como
“envenenar” uísque, que era misturar bebidas mais baratas com as marcas
famosas.
Valdec Cordeiro, 52 anos, é outro remanescente que
viveu com intensidade as noitadas de Brasília na época dos embalos de sábado à
noite. Ele lembra com saudade dos pegas de carro que atazanavam não só o Lago
Sul, mas também a Esplanada e a área do Caseb. “Não há como falar de boates sem
falarmos dos pegas. E pra mim o mais doido não era o do Gilberto, mas o do
Hotel Nacional”, opina.
Valdec lembra com precisão de como era o circuito: “Os
malucos subiam o vale do rio doce, desciam o Hotel Nacional, passavam por baixo
do viaduto da rodoviária, desciam o buraco do tatu no sentido Asa Norte, faziam
a curva da cascavel e subiam o vale do rio doce novamente”.
As máquinas envenenadas eram Opala, Dodge e Maverick
de oito cilindros, todos com câmbio na altura do volante. “Nesse trajeto houve
um acidente sério. O pega tava comendo e um ônibus vindo da garagem da
rodoviária entrou na pista. Um dos carros bateu no baú produzindo um efeito
dominó. Oito veículos ficaram só o bagaço, mas o incrível é que ninguém
morreu”.
Guerra entre a Kako e a Shalako: O promoter Mário
Beethoven, guru dos Djs de Brasília, considerado o maior discotecário da
capital na década de 70, lembra com nostalgia daqueles tempos, em especial da
disputa acirrada entre as boates Kako e Shalako, no Gilberto Salomão. “Havia
uma guerrinha entre a Kako e a Shalako. Quando uma tinha uma música que a outra
ainda não tinha, tocava a noite inteira, só para provocar. O camarada saía da
que estava tocando e ia à outra para atiçar: pô, lá eles estão tocando tal balanço,
vocês não têm aqui para tocar não? O concorrente que não tinha a música ficava
morrendo de inveja”.
Mário Beethoven lembra que a Sunshine, que sucedeu a
Shalako, foi a primeira boate de Brasília no estilo das grandes discotecas. O
sucesso era tanto que as pessoas faziam filas imensas para entrar. “No Brasil,
as discotecas começaram no Rio e em São Paulo com as grandes casas abertas por
Ricardo Amaral. Enquanto as boates tinham capacidade para, no máximo, umas 500
pessoas, as discotecas reuniam até duas mil pessoas”.
Beethoven recorda também do estilo luxuoso da
Nepentta, segunda boate do Brasil a ter telão, novidade que só existia na New
York, de Ipanema, no Rio. “A Nepentta tinha um estilo sofisticado, era muito
luxuosa e freqüentada por pessoas requintadas”. O ex-disc-jockey afirma que o
boom das discotecas foi nos anos de 1975 a 1980. “Em 78 foi o auge.
A TV Globo chegou a lançar a novela Dancing Days, que
tinha boates como tema, e um ano antes havia ocorrido uma explosão nas
bilheterias dos cinemas em função do filme Nos embalos de sábado à noite,
estrelado por John Travolta, um símbolo daquela época”.
“Batizado” aos 15 anos: Beethoven conta sobre o
sufoco que passou ao ser “batizado”, aos 15 anos, como discotecário numa festa
de arromba no aquário do Elefante Branco, no ano de 1970. Era a realização da
edição brasiliense do “Big Boy, o baile da pesada”, festa de muito sucesso no
Rio de Janeiro que estava sendo levada para outras capitais pelo então famoso
radialista da Rádio Mundial AM em parceria com Ademir Lemos, maior discotecário
do Rio naqueles tempos.
“O Ademir me chamou para tocar, eu nunca tinha tocado
para multidões, pois tocava apenas de vez em quando na Shalako. Eu pedi a ele
que me desse um toque antes de me chamar para que eu pudesse me preparar. Só
que ele era doido, vivia pulando, e anunciou de repente ao público: agora, com
vocês, Mário Beethoven. Ele me deixou sozinho e sumiu do palco. Eu tremi muito,
a primeira música que botei quase não conseguia acertar a agulha no disco.
Quando o som saiu foi um estouro, a galera vibrou muito, caiu na dança. Aí eu
fiquei mais calmo e a partir da terceira música já havia me soltado”.
Antes, som não era de boate: Mário diz que ficou
desesperado porque os discos que havia levado para a festa estavam acabando e
Ademir não voltava. “Eu já estava no palco há quase uma hora, e ninguém sabia
do paradeiro do Ademir. Um cara sugeriu que eu pegasse alguns discos do Ademir,
mas eu não queria mexer no material sem autorização. Foi um alívio quando
finalmente o maluco do Ademir voltou. Ele chegou como um doido e deu um pulo no
palco”.
Beethoven diz que acompanhou o início das casas que
realmente passaram a tocar músicas de boate, pois antes o som não tinha nada a
ver com boate. “O que rolava era bossa nova, Vinícius, Toquinho, Jorge Ben,
Wilson Simonal. Não havia uma segmentação. Mesmo Credence, James Brown e
Rolling Stones não são músicas de boate”. Ele lamenta que o estilo do que era
boate nos anos 70 e 80 esteja acabando. “Tocam de tudo hoje nas casas noturnas:
axé, xaxado, forró”, diz.
Os donos das pistas de dança: Mário Beethoven e
Diógenes Barbosa, o Didi, figuravam nos anos 70 na lista dos melhores
discotecários do país. Comandando as pistas de casas noturnas como a Kako,
Shalako, 707, Zoom, Sunshine, Machine, L’escalier e Nepentta, eles incluíram
Brasília no circuito das grandes boates do Brasil, competindo com o Rio de
Janeiro e São Paulo. O alagoano Didi, que veio para Brasília ainda menino,
começou a carreira de discotecário no Drugstore, um misto de bar e de dancing
no Gilberto Salomão. Era um ambiente, lembra ele, onde rolava muito James Brown
e também Led Zepellin, Rolling Stones, Pink Floyd.
Gente famosa do Rio e São Paulo: Didi começou na
Drugstore, foi para a Shalako e depois dominou o espaço na Kako, que eram as
grandes casas do Gilberto Salomão. Tem orgulho de dizer que bombou também a
Nepentta, que, em sua opinião, foi a melhor casa noturna de Brasília naqueles
tempos. “A Nepentta atraía gente do Rio e de São Paulo para dançar aqui. Eu
acompanhava, nas noitadas, famosos como o Pedrinho Aguinaga, que era
considerado o homem mais bonito do Brasil, e sua então mulher, a lindíssima Monique
Evans, que se tornaram figuras carimbadas na Nepentta”.
Mas foi na Machine, casa que fechou as portas pouco tempo depois de aberta, que Didi viveu um dos momentos mais marcantes de sua vida: um encontro com o poeta Vinícius de Moraes. “O Paquito, grande amigo meu, apareceu lá com o Vinícius, e me convidou para sentar à mesa com eles. Bebemos um litro de uísque. Eu não podia acreditar que aquilo era verdade, que estava ali conversando com o Vinícius, pois o poeta era um mito. O Vinícius, que tinha fama de mulherengo, queria conhecer umas meninas, mas a Machine estava quase vazia naquele dia. Ele brincou: aqui não vem mulher não, hem? Logo se levantou e foi embora”.
Outro momento inesquecível foi o disco de ouro que Didi ganhou em 1978 da Warner Bros., gravadora que no Brasil ganhou nome de WEA. “A Warner colocou olheiros freqüentando a noite no Brasil inteiro para escolher dez DJs e fazer o Disco Inferno II, disco que reuniu os melhores balanços tocados por nós. Eu fui um dos premiados e homenageado com o disco de ouro por ter sido considerado grande incentivador da disc music. Foi uma festa de arromba na Papagaio-Rio, black-tie, tapete vermelho, essa coisa toda. Estava no auge uma novela da Globo, Dancing Days, que era centrada no movimentado das discotecas, e muitos artistas apareceram”. (W.A.)