O Tribunal de Contas da União (TCU) decidiu, nesta
última quarta-feira (7), que o presidente Lula não precisará devolver o relógio
Cartier Santos Dumont, avaliado em cerca de R$ 60 mil, que ele ganhou da
própria grife francesa durante uma visita oficial à França em 2005, durante seu
primeiro mandato presidencial.
A decisão representa uma mudança no entendimento
firmado pelo TCU. Em 2016, o tribunal entendeu que ex-presidentes poderiam
manter apenas presentes de caráter personalíssimo, como bonés, perfumes e
medalhas. Em 2023, a corte esclareceu que itens personalíssimos, quando forem
de alto valor comercial, devem ser entregues à União.
A nova orientação do TCU livra Lula do constrangimento
de devolver o relógio. Assim, Lula venceu o caso em julgamento, mas a
verdadeira vitória política e jurídica, num contexto maior, foi do
ex-presidente Jair Bolsonaro, que está para ser julgado em investigação mais
grave, de natureza criminal, por fatos similares.
O julgamento no TCU ocorreu em razão de uma
representação feita pelo deputado federal Sanderson, após a Polícia Federal
(PF) passar a investigar Jair Bolsonaro pelos presentes que recebeu quando era
presidente. Alguns desses presentes foram vendidos no exterior e depois
recomprados, mas todos foram devolvidos por Bolsonaro.
A lógica por trás do requerimento do deputado
Sanderson era simples: a legislação sobre o recebimento de presentes nunca
mudou. O que mudou foi o entendimento do TCU. Portanto, o tratamento dado aos
presentes de Lula e Bolsonaro deve ser o mesmo. Se Bolsonaro for investigado e
tiver que devolver presentes, o mesmo deve acontecer com Lula. E qual é essa
legislação que vem sendo reinterpretada?
No Direito brasileiro, apenas leis aprovadas pelo
Congresso Nacional podem criar direitos, deveres e obrigações. No entanto, a
legislação que regula essa matéria é um decreto, o Decreto nº 4.344/02. Decreto
não é lei, mas um ato do presidente que possui poderes limitados para regular
lei já existente. Assim, a discussão já começa aí: poderia um decreto
estabelecer o destino dos presentes dados a presidentes? Em tese, não.
De toda forma, o decreto diz, em seu art. 3º, que
presentes recebidos por presidentes, inclusive obras de arte, fazem parte de
seus acervos documentais privados, sem mencionar um limite de valor, salvo se
recebidos em certas cerimônias oficiais como viagens ao exterior e cerimônias
de trocas de presentes. Nesse caso, os itens são públicos.
O peso político e jurídico da decisão do Tribunal de
Contas a favor de Bolsonaro é inegável
O decreto prevê ainda que os bens incorporados ao
acervo privado do presidente podem ser vendidos, e que a União tem direito de
preferência na compra. Se ela tem direito de preferência para comprar,
logicamente, o item não lhe pertence, porque ninguém compra algo que já é seu.
Em 2016, após ampla auditoria sobre presentes
recebidos por Lula e Dilma, o TCU entendeu que itens de caráter personalíssimo
são do acervo privado do presidente. E em 2018, a Portaria 59, revogada em
novembro de 2021, definiu joias como bens personalíssimos. Ou seja, a
legislação sobre o assunto deu ampla margem para interpretações.
A falta de regulamentação adequada sobre essa matéria
e a ausência de qualquer limite de valor foram justamente os argumentos
utilizados pelo ministro Jorge Oliveira, que escreveu o voto vencedor no
julgamento de ontem. O ministro ressaltou que não existe norma legal específica
que diga o que é um bem de natureza “personalíssima” e de “elevado valor de
mercado”.
Como não há lei, segue seu raciocínio de que não se
pode estabelecer a obrigatoriedade de entrega do bem à União, por uma razão
muito simples: a Constituição brasileira prevê o princípio da legalidade,
segundo o qual alguém só pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer algo em
virtude da lei.
Se não há previsão legal, então “não há fundamentação
jurídica para caracterização de presentes recebidos por presidentes da
República no exercício do mandato como bens públicos”, escreveu o ministro em
seu voto. O ministro Jorge Oliveira foi acompanhado por outros quatro
ministros, formando maioria.
O ministro relator do caso, Antonio Anastasia, seguiu
a área técnica e disse que Lula poderia manter o relógio, pois o recebeu antes
do entendimento do TCU de 2016, seguido pelo ministro-substituto Marcos
Bemquerer Costa. O ministro Walton Alencar foi além: entendeu que Lula deveria
devolver não só o relógio Cartier, como todos os demais bens de luxo que tenha
recebido.
O maior beneficiado, contudo, foi Jair Bolsonaro, já
que a decisão do TCU praticamente encerra a investigação da PF contra ele,
fundada no argumento de que Bolsonaro não poderia ter ficado com os presentes
luxuosos que recebeu, muito menos vendê-los. O peso político e jurídico da
decisão do Tribunal de Contas a favor de Bolsonaro é inegável.
Embora a decisão do TCU não seja vinculante para o
Supremo, onde correm as investigações contra Bolsonaro, causa um grande
constrangimento para o ministro Alexandre de Moraes e seus colegas, que terão
que enfrentar os argumentos vencedores no TCU se quiserem condenar Bolsonaro.
A decisão do TCU, em tese, dificulta até mesmo a
apresentação de uma denúncia pela Procuradoria-Geral da República (PGR).
Afinal, se os bens são privados e pertencem legitimamente a Bolsonaro, como
agora entendeu o TCU, ele não pode ser acusado de ter se apropriado
indevidamente deles, ou de ter lavado o dinheiro obtido com sua venda.
A defesa de Bolsonaro já avisou que vai pedir o
arquivamento do inquérito das joias no Supremo. Minha opinião, já externada em
artigo aqui na Gazeta do Povo, é de que presentes de alto valor recebidos por
presidentes da República devem, sim, ser considerados públicos, porque só são
dados em razão do cargo ocupado temporariamente.
Contudo, nem Lula, nem Bolsonaro devem responder
criminalmente por terem ficado com os presentes, já que a legislação é dúbia e
aberta a interpretações. Além disso, o próprio setor de documentação da
Presidência, composto de servidores concursados, classificou os itens como
parte do acervo privado do presidente, como expliquei aqui.
Tudo isso deixa claro que Bolsonaro não tinha intenção
criminosa (dolo), o que é um requisito essencial para uma acusação e
condenação. Isso, pelo menos, se o Direito for seguido. Ultimamente, ele pouco
importa. Temos visto a sucessiva violação de regras numa perseguição implacável
ao que chamam de “extrema direita”.
Nesse contexto, o que você acha que vai acontecer?
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