“Sendo a base do nosso governo a opinião do povo,
nossa primeira tarefa deve ser mantê-la livre; e se me incumbissem de escolher
se deveríamos ter um governo sem jornais ou jornais sem governo, não hesitaria
por um momento em preferir a última opção”. Carta de Thomas Jefferson a
Edward Barrington (Thomas Jefferson: political writings, Cambridge University
Press, 1999, p.153)
Um juiz de uma corte constitucional – cuja missão
deveria se limitar a examinar a constitucionalidade de leis e atos, somente
quando provocada e sempre atuando em um número bastante reduzido de casos –
impôs a toda a população brasileira uma proibição. Falando em juridiquês, é uma
obrigação de não fazer – de não acessar uma rede social que tinha 21 milhões de
usuários no Brasil.
Em casos como esse, o indivíduo que sofre a proibição
precisa ser formalmente notificado. Nenhum dos milhões de brasileiros afetados
pela proibição foi notificado como manda a lei. Aliás, nenhum desses milhões de
brasileiros sequer faz parte do processo. É como se dois moradores da
vizinhança estivessem brigando na Justiça e o juiz do caso determinasse que
você, que nada tem a ver com a história, está proibido de fazer uma coisa que
tem o direito de fazer.
Os guerreiros da liberdade que sempre lutaram contra a
censura mudaram de opinião, e agora consideram a censura um instrumento
importante de defesa do Estado de Direito
Meus amigos juristas dizem que esse caso é um exemplo
de censura somada à violação do devido processo legal. Eu não sou jurista, mas
achei essa decisão terrível – e o fato dela ter sido posteriormente referendada
por 5 magistrados foi mais terrível ainda. Como não sou jurista, apenas li o
artigo 220 da Constituição Federal que, na minha interpretação, proíbe censura
no país.
Aliás, durante muito tempo esse era o consenso. Havia
até um slogan, que era repetido por intelectuais, ativistas e jornalistas, que
dizia: censura nunca mais. Curiosamente, esse slogan agora foi substituído por
outro que diz que “liberdade de expressão não é liberdade de agressão”.
Essa frase me inspirou uma reflexão. Eu acredito, como
diz meu amigo Roberto Rachewsky, que a liberdade de expressão é um direito
absoluto. Isso significa que não cabe nenhum limite ou restrição prévia.
Evidentemente, com a liberdade de expressão vem a responsabilidade por aquilo
que se expressa. Por isso a lei prevê os crimes de injúria, calúnia e
difamação, que devem ser tratados de acordo com o devido processo legal.
O Estado não pode decidir que certas coisas, das quais
ele não gosta, são proibidas e outras, que o agradam, são permitidas. A censura
não se justifica só porque alguém se sente agredido, ou criticado injustamente
– mesmo que esse alguém seja o Estado.
Se alguém abusou da liberdade de expressão para
cometer um crime, essa pessoa pode e deve ser punida. Mas ninguém pode ser
obrigado a fazer alguma coisa, ou a deixar de fazer, a não ser em virtude de
lei – é o que diz a constituição e os fundamentos do Direito. É possível que,
ao exercer minha liberdade de expressão, eu agrida alguém. Isso pode ser
considerado um crime. Se for, o remédio é um processo judicial. O processo pode
ser por injúria, calúnia ou difamação, que são crimes tipificados no código penal.
Também pode caber um processo civil por perdas e danos, se meu ato causar
prejuízo a alguém.
Esses processos têm que obedecer ao devido processo
legal e à regra do juiz natural – o que significa que é ilegal escolher
arbitrariamente o juiz ou o tribunal que vai julgar um caso particular. O juiz
também precisa ser imparcial e por isso não pode ser, ele próprio, a vítima ou
interessado no processo.
Basta lembrar esses fundamentos para perceber que é
jurídica e moralmente injustificável a decisão de censurar milhões de cidadãos
brasileiros. Não cabe ao Estado decidir o que faremos com nossa liberdade. O
cidadão é livre para fazer o que quiser. Certas condutas são consideradas
criminosas pela lei. É dever do Estado atuar para prevenir e impedir essas
condutas, e investigar e punir os que cometem crimes. Mas ter uma opinião não é
crime, tampouco criticar uma autoridade.
O fato de alguém se sentir agredido ou injustamente
criticado não significa que um crime foi cometido – isso só pode ser decidido
através do devido processo legal, respeitando todos os direitos e garantias do
réu. Essa é a regra que sempre vigorou no Brasil no tratamento a criminosos
violentos, inclusive os mais perigosos, como chefes de facções. Essa doutrina é
conhecida como garantismo penal, e por trás dela está a criação de dispositivos
como a audiência de custódia, que libera mais de 50% de todos os criminosos
presos em flagrante.
Aparentemente, quando se trata de liberdade de
expressão, o garantismo ficou guardado na gaveta. Os guerreiros da liberdade
que sempre lutaram contra a censura mudaram de opinião, e agora consideram a
censura um instrumento importante de defesa do Estado de Direito. Como diz o
advogado André Marsiglia em seu excelente livro Censura Por Toda a Parte,
“chegamos a um ponto em que a censura, quando identificada, é aceita como um
instrumento de ordem”.
O livro de Marsiglia mostra que a decisão contra a
rede social X não é um evento isolado, mas sim a extensão de um processo que
começou com a abertura, em 2019, do inquérito 4.781, conhecido como inquérito
das Fake News ou, mais carinhosamente, como Inquérito do Fim do Mundo.
Diz André Marsiglia: “O inquérito 4.781 aos poucos foi
se transformando em um polvo gigante e indigesto, com tentáculos infinitos.
Investigava Fake News contra membros da corte, depois passou a investigar
possíveis milícias digitais, e por fim foi ampliado para alcançar atos
democráticos. Atualmente, além do 4781, são mais oito inquéritos. Todos são
sigilosos e de autoria do mesmo ministro”
É possível observar que há três tipos de decisões
judiciais que podem ser consideradas injustas. O primeiro tipo é a decisão que
segue todas as leis, normas e ritos, mas que não faz justiça. Por exemplo, uma
decisão que libera um criminoso, preso em flagrante, na audiência de custódia,
em nome da redução da “superlotação carcerária”.
O segundo tipo de decisão injusta é aquele que viola a
Constituição, a lei, o Direito ou a jurisprudência. Um bom exemplo é o
magistrado que julga um processo no qual ele também figura como vítima.
O terceiro tipo de decisão judicial injusta é aquele
que está tão fora do ordenamento jurídico a ponto de ser considerado uma
decisão antijurídica, alienígena à legalidade. Esse tipo de decisão não pode
mais ser descrito ou analisado utilizando-se o vocabulário do Direito. É
necessário recorrer à política, à história ou às narrativas distópicas como os
livros 1984 e a Revolução dos Bichos.
Para que o Brasil volte à normalidade é preciso muito
trabalho. Discursos em cima de carros de som nada resolvem. Reclamações não
adiantam, postagens indignadas e lacração produzem resultado nulo. Não há saída
milagrosa nem solução fácil ou rápida.
Soluções só serão possíveis quando a maioria dos
formadores de opinião estiver consciente da gravidade do que está acontecendo.
Mas ainda há muitos pessoas e entidades aplaudindo os eventos recentes.
Aplaudindo a censura.
Eu sempre defendi a autocontenção dos poderes como a
única estratégia sustentável para saída da crise institucional. O secretário de
Justiça e Cidadania do Estado de São Paulo, Fábio Prieto – que foi
presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região –aponta um caminho.
Fabio diz que o Poder Judiciário e o Sistema de
Justiça deram grandes contribuições ao Brasil, mas que chegou a hora de ambos
renunciarem a algumas de suas competências para que elas sejam assumidas pelos
cidadãos. Segundo Fabio Prieto, a pacificação do país só poderá ser alcançada
se o Judiciário der mais responsabilidade e mais poder de crítica e de escolha
ao eleitor.
“O Judiciário fez um trabalho relevante ao longo dos
anos e deu a sua contribuição”, diz Fábio, que continua: “Mas agora é hora de
concluirmos essa caminhada. E como se conclui? Dando poderes cívicos ao
cidadão. E responsabilidade. Se o poder vai ser bem ou mal exercido, essa é uma
responsabilidade do cidadão”.