A expressão “pobre de direita” não é
nova. Já estava velha quando escrevi os artigos “A nova luta de classes: pobres
de direita contra ricos de esquerda” e “O melhor de dois mundos: a vida dupla dos
ricos de esquerda”, em novembro de 2020. Salvo engano, ela apareceu pela
primeira vez em 2016, para desqualificar e ofender os brasileiros das classes
menos favorecidas que apoiaram, naquele ano, o impeachment de Dilma Rousseff.
Em 2018, a eleição de Bolsonaro foi o
gatilho para a expressão “pobre de direita” voltar a circular no chamado campo
progressista. “Como assim?”, reagiram intelectuais e políticos de esquerda. “A
gente trabalha tanto para perpetuar e capitalizar politicamente a miséria, e é
assim que esses pobres ingratos retribuem? Votando nos fascistas?”
Já em 2020 o gatilho foi o desempenho
medíocre dos partidos de esquerda nas eleições municipais. Escrevi, na
ocasião: “O uso da expressão [pobre de direita] tem uma função catártica
para a esquerda. Basta pesquisar no Google ‘pobre de direita’ para ver o ‘ódio
do bem’ contra os pobres ser destilado em doses cavalares. Os brasileiros mais
humildes são comparados a escravos que apoiam escravagistas, diagnosticados
como doentes mentais e chamados de jumentos. Do alto de sua superioridade
moral, o máximo que os intelectuais concedem é que não se deve odiar esses
pobres, mas ter pena deles, por serem tão burros e imbecis”.
Dá para estabelecer um padrão: sempre
que a esquerda sofre derrotas ou enfrenta alguma crise, como aconteceu em 2016,
2018 e 2020, ela joga a culpa nos pobres.
É curioso, nesse sentido, que a
expressão “pobre de direita” volte a ganhar força em 2024, quando (pelo menos
segundo a grande mídia) o Brasil governado pela esquerda vive uma fase
maravilhosa, com a economia bombando e os pobres comendo picanha, gratos ao STF
por salvar a democracia das garras do fascismo.
Em um contexto tão favorável, por que
voltar a ofender os pobres? Pois é isso que faz, apesar de alguns méritos em
suas análises, o novo livro do sociólogo Jessé Souza.
O livro ofende os pobres já na capa, no
título e nos dois subtítulos. Ofende no título, “O pobre de direita”,
porque rotular alguém como direitista, aos olhos da intelectualidade de
esquerda, é um insulto, ao menos na intenção;
Ofende no primeiro subtítulo, “A
vingança dos bastardos”, ao chamar de “bastardos” as dezenas de milhões de
brasileiros que não votaram no mesmo candidato do autor. Ainda que,
tecnicamente, a palavra não seja ofensiva, na prática, ela adquiriu uma conotação
pejorativa (na dúvida, experimente xingar de bastardo um ministro do Supremo);
E volta a ofender no segundo subtítulo,
“O que explica a adesão dos ressentidos à extrema-direita?”, ao classificar
como “ressentidos” e de “extrema-direita” todos os eleitores pobres de
Bolsonaro. (“Extrema-direita”, vale lembrar, é tudo que está à direita do PT.)
Em suma, só quem vai gostar do livro
são as elites de esquerda, aquelas que desprezam os pobres que não seguem a sua
cartilha, aqueles que ostentam virtude nas redes sociais enquanto mantêm seus
privilégios de classe.
Para a intelectualidade de esquerda o
problema do pobre de direita não é ser pobre, é ser de direita. A solução não é
combater a miséria, mas convencer os miseráveis a votar da maneira correta,
como as elites cultas e virtuosas deste país
Seria prudente, para a parcela bem
intencionada da esquerda, se perguntar se essa estratégia de desqualificar a
pobreza, por suas escolhas políticas, traz algum benefício para a sua causa.
Continuem ofendendo brasileiros comuns, vai dar "certinho".
Aliás, a mesma estratégia foi usada nos
Estados Unidos, e a consequência foi a volta de Donald Trump. Porque,
simplesmente, milhões de americanos comuns se cansaram da demonização,
promovida pelo sistema, do candidato republicano e seus eleitores das classes
baixas.
O americano comum cansou de ser chamado
de nazista por não gostar de imigrantes ilegais e pronomes neutros, enquanto
via sua vida ficar cada vez mais difícil. Ele percebeu que o argumento da
“defesa da democracia” estava sendo usado para distorcer a própria democracia e
manipular o povo, já que, por definição, não existe democracia de um lado só.
O americano comum entendeu que a agenda
woke, os ataques ao “fascismo” e a defesa da “justiça social” são, muitas
vezes, apenas uma conversinha de elites ricas que encontraram uma maneira fácil
e barata de expiar sua culpa de classe sem sair do sofá.
Ora, o mesmo processo está acontecendo
no Brasil. Daí, talvez, a aversão provocada na elite acadêmica pelos
“pobres de direita” – aversão que precisa ser racionalizada, sempre com
aquele olhar moralmente superior, condescendente e arrogante de quem sabe o que
é melhor para os pobres. Não é culpa deles, eles apenas precisam ser
recivilizados.
Mas voltemos ao livro. Já na primeira
página, o autor parte de duas premissas que parecem equivocadas. Primeiro, ele
menospreza a importância dos fatores econômicos nas escolhas políticas dos mais
pobres: “Nunca foi a economia, tolinho!”, escreve no título do prefácio (mais
uma vez, de forma condescendente: pergunte aos americanos pobres se a economia
não influenciou seu voto em Trump).
Para, em seguida, afirmar, de forma
categórica: “A economia jamais foi, em nenhum caso histórico, o móvel do
comportamento humano”. Jesus! Já que é assim (e já que destruir livros está na
moda), joguem fora 90% dos livros que tratam do tema – começando pelas obras de
Karl Marx, aquele bastardo!
Ora, não é preciso ler Marx, nem Max
Weber e Pierre Bourdieu, citados em "O pobre de direita", para
perceber a falácia dessa teoria. Para o brasileiro comum que acorda cedo e pega
ônibus cheio para ir trabalhar, que sofre para pagar boletos e vê sobrar mês no
fim do salário, a economia pode não ser o único fator, mas é seguramente um
fator determinante de seu comportamento - do seu comportamento eleitoral,
inclusive.
Sobretudo quando esse brasileiro comum
vê os candidatos de esquerda menos preocupados com a inflação e o desemprego do
que com banheiros unissex, a liberação do aborto e das drogas, a relativização
da censura e a defesa dos direitos dos bandidos – enquanto os candidatos de
direita defendem liberdade de expressão, os cortes de impostos e mais segurança
para as famílias.
De qualquer forma, quando a economia
desmorona, não há narrativa ideológica que resista. Foi assim com Dilma em
2016. Parece que a lição não foi aprendida.
A segunda premissa equivocada é afirmar
que a ascensão do conservadorismo entre as classes populares no Brasil se deu
“contra” os próprios interesses dessas classes, já que Bolsonaro estaria associado
aos interesses das elites econômicas e das classes médias, enquanto Lula
estaria associado aos interesses dos pobres.
Ora, não parece uma boa ideia insistir
no argumento da luta de classes como explicação para o Brasil contemporâneo,
mas já que é assim: qual foi mesmo o candidato que as elites apoiaram em 2022,
incluindo os banqueiros, as grandes corporações, o mercado financeiro e os
meios de comunicação, além da elite cultural e acadêmica? Como disse
recentemente um comentarista da Globo News, "ser de esquerda virou uma
coisa de elite".
Talvez a explicação esteja aí. Talvez
os eleitores pobres – diferentemente dos intelectuais ricos – tenham
simplesmente percebido de que lado estão as elites.
Também é importante ter memória e
respeitar os fatos, sem tentar apagar o passado a serviço de uma agenda. Por
exemplo, segundo um estudo da insuspeita Fundação Getúlio Vargas publicado em
outubro de 2020, graças ao programa de auxílio emergencial o número de
brasileiros abaixo da linha de pobreza – aqueles com renda domiciliar per
capita inferior a meio salário mínimo – recuou impressionantes 23,7%, atingindo
nova mínima de 50 milhões de pessoas, o nível mais baixo da série histórica.
Isso em meio à tragédia da pandemia, e durante o governo que supostamente contrariava
os interesses dos pobres.
Como escrevi em 2020, o voto do pobre
não é ideológico. Pobres não são de direita nem de esquerda. São apenas pessoas
a quem não são dadas, geração após geração, oportunidades de educação e
trabalho que possam tirá-las da situação dramática em que vivem. Infelizmente,
enquanto não forem criadas essas oportunidades, os pobres votarão,
pragmaticamente, no candidato que garantir o básico para não morrerem de fome,
seja de que partido ele for.
Para o pobre, o problema está na pobreza.
Mas, aparentemente, para a intelectualidade de esquerda o problema do pobre de
direita não é ser pobre, não é viver miseravelmente, não é depender a vida
inteira de mesada do governo, não é ser privado de educação de qualidade e
oportunidades de trabalho digno; o problema é ele ser de direita. Sendo assim,
a solução não é combater a miséria, mas convencer os miseráveis a votar da
maneira correta, como as elites cultas e virtuosas deste país.