Ao que parece, o mundo, neste século XXI, ainda não superou totalmente as práticas econômicas herdadas do mercantilismo europeu do século XV. Pelo menos, em termos de comércio mundial, o que se pode constatar hoje é que o planeta vive uma espetacular onda de importações e exportações, com os mares e oceanos engarrafados pelo tráfego de enormes cargueiros. Compra-se e vende-se de tudo. Talvez, por isso, existam ainda hoje tensões e mesmo conflitos provocados por desentendimentos no comércio internacional. Para trazer regras de obediência no comércio internacional é que foram criados diversos organismos internacionais de controle e fixação de normas desse mercado. O que se sabe é que muitas dessas normativas são simplesmente desrespeitadas, pois a busca desenfreada pelo lucro e por riquezas ainda é a mesma que movia multidões de indivíduos, cinco séculos atrás.
Dos elementos que caracterizavam o mercantilismo, ainda temos presente,
em nosso país e em pleno exercício, o controle estatal da economia, conforme
impõe um dos mandamentos contidos na cartilha 2024. E é neste ponto que está o
atual conflito envolvendo a venda de carne do Mercosul, com foco no Brasil,
para o mercado comum europeu, ou mais precisamente, França.
Trata-se aqui de um conflito comercial que tem tudo para escalar em
enormes prejuízos mútuos. Mas é preciso saber, logo de saída, que, caso a venda
de carne fosse intermediada diretamente pelos produtores, muitos desses
desentendimentos simplesmente desapareceriam. O caso é que entrou nessa briga o
componente político e aí a coisa toda desandou, porque passa a envolver outros
aspectos, inclusive, o protecionismo do tipo nacionalista e partidário.
O mesmo protecionismo contido no mercantilismo do século XV, só que
agora passa a conter aspectos ideológicos. Nessa briga, o certo é que ninguém
tem razão ou, simplesmente, não há inocentes. Notem que nem mesmo as seguidas
visitas do presidente francês, Macron, ao Brasil foi suficiente para amainar a
questão. “Nossos pratos não são latas de lixo”, esbravejaram os deputados da
Assembleia Nacional da França, nesta terça-feira (26), rejeitando, por
unanimidade, os acordos em andamento sobre o comércio entre Mercosul e União
Europeia.
Há aqui diversos elementos a serem analisados. O primeiro é a forte e
coesa pressão feita pelos produtores franceses, pois eles entendem que não
podem competir em escala com o poderoso agrobusiness brasileiro e latino. Há
acusações que antes de tudo necessitam ser investigadas profundamente, como é o
caso de que as carnes do Mercosul e sobretudo do Brasil são produzidas com uso
de hormônios do crescimento e sem maiores controles de normas sanitárias. Por
outro lado, é preciso notar que, neste tipo de comércio, aparecem, no topo,
produtores e donos de frigoríficos como os irmãos Batistas, envolvidos até o
pescoço em situações prá lá de complicadas, dentro e fora do Brasil.
Os europeus, com a tradição de séculos de mercantilismo e de exploração
colonial, conhecem o Brasil. Os brasileiros também conhecem o passado dos
corsários franceses e suas incursões aqui no Brasil em várias épocas, sobretudo
em 1711, ano em que o Rio de Janeiro foi sequestrado por piratas francos. Há
também, nas acusações dos políticos franceses contra a carne brasileira, o uso
massivo de antibióticos, a maioria proibida na União Europeia, sendo que muitos
desses são produtos cancerígenos. Não se pode pôr as mãos no fogo em favor da
carne brasileira, pois não há sinais à vista de vistoria ou rastreabilidade
dessa carne.
Por outro lado, os franceses sabem que muitos rebanhos são criados como
nos séculos passados, soltos em grandes extensões de terras, inclusive em áreas
de preservação. De fato, o setor agrícola francês se vê esmagado pelo porte
representado pelo mercado produtor de carne do Brasil, que é, nada mais, nada
menos que o maior produtor de proteínas do planeta.
Componentes do tipo nacionalista ou ufanista entram nessa briga para
jogar ainda mais gasolina na fogueira, fazendo, da questão, um assunto para os
salamaleques do Ministério das Relações Exteriores, no tempo em que ainda havia
negociadores profissionais nessa pasta. O fato é que muitos brasileiros estão
torcendo pela briga e não estão do lado de nenhuma das partes.
A esperança é que a redução de vendas para a Europa e para a França,
especialmente, avance a tal ponto que os produtores brasileiros sejam obrigados
a oferecer o produto no mercado interno a preços compatíveis com o poder de
compra da população. A população, acostumada a procurar ossos nos containers
dos atacadões, poderia, enfim, comer esse “lixo” que os franceses rejeitam.