A atual epidemia de autoritarismo não
se restringe a mandatários e autoridades que abusam do seu poder com o pretexto
de combater o mal maior. Essa esfera é só a mais visível e óbvia. O alimento do
autoritarismo contemporâneo vem das pessoas comuns.
E não só dos autoproclamados “wokes” e
outras classificações patéticas que tentam afetar uma grandeza revolucionária
risível. A tentação autoritária, a mania de julgar e condenar sumariamente num
teclado, se espalhou por todo lado. O iPhone é uma arma quente, como diria o
poeta.
Partindo da bússola precária e
defeituosa da velha dicotomia direita x esquerda - “conceitos” que comportam
qualquer definição, dependendo do “lado” do mensageiro - brota um juiz
implacável a cada esquina.
Os tiranetes que se multiplicaram pelo
mundo nos últimos anos, inventando éticas cenográficas para controlar e oprimir
as sociedades, são só o prolongamento natural e orgânico dessa crescente
tentação do indivíduo do século 21 de julgar, subjugar e se possível eliminar
(“cancelar”) o seu semelhante.
Vários fenômenos de comportamento na
atualidade confirmam essa hipótese (sim, vamos apresentar como hipótese, para
não virar também mais uma sentença nas mãos de ninguém). A posse de Trump, por
exemplo. Mesmo com as aparentes mudanças de postura nas big techs, sinalizando
que irão parar de tratar o presidente dos EUA como o vilão da galáxia, a
imprensa prosseguiu com o seu teatro de quinta categoria.
Trump é contra imigrantes - sugerem as
manchetes, com a maior desinibição do mundo. E se esse mundo estivesse um pouco
mais saudável, não haveria um imenso contingente de pessoas comuns (não-militantes)
dispostas a acreditar e repetir por aí que Trump é um monstro xenófobo.
Mas há faces ainda piores do fenômeno.
Constatáveis, por exemplo, no caso brasileiro da recente eleição para as
presidências do Senado e da Câmara dos Deputados. Num cenário previsível de
manutenção do status quo no Congresso, sobreveio uma briga de foice no escuro
entre os simpatizantes da tal “direita”.
Sim, a “tal direita”, porque não existe
ninguém na face da Terra capaz de explicar o que significa esse “conceito” tão vago
e tão disseminado, sem o qual muita gente hoje em dia se recusa a viver.
Cansamos de ouvir que o astronauta, o
vice Mourão e cia eram “o fortalecimento da bancada da direita no Senado contra
o sistema”. Aí quando a atuação desses novatos na política não corresponde ao
sonho dos teóricos de ocasião, ninguém quer fazer o óbvio: reconhecer que o
rótulo “direita”, com mais meia-dúzia de conceitos de cartilha, não credencia
nem diz nada sobre ninguém.
Preferem dizer então que não são “a
verdadeira direita”, etc - um papo que fica muito parecido com o do pregador
socialista, que vai insistir para sempre que o socialismo é ótimo, só não foi
implantado ainda da maneira correta.
A palavra “direita” é hoje o maior
trunfo dos autoritários fantasiados de democratas. Eles usam o “perigo da
direita” para justificar os seus abusos
E como é uma classificação vaga, muita
gente comum e não partidarizada acredita que “direita” designa uma propensão
antidemocrática - associável ao AI-5 ou outros eventos autoritários. Por que
então insistir numa classificação que gera mal-entendidos porque pode ser - e é
- entendida de formas diversas e até opostas? Porque dá voto, dá like, dá
dinheiro e dá engajamento automático.
Alguns ministros do governo anterior
proporcionam um bom comparativo sobre o que serve e o que não serve para
avaliação política. Paulo Guedes atravessou todas as tormentas e entregou um
bom resultado de gestão. Abraham Weintraub não conseguiu completar a gestão e
saiu atirando no governo que ele mesmo apresentava como o representante da
“direita”. Tarcísio de Freitas teve êxito na gestão ministerial e foi governar
São Paulo. Muitos continuam preferindo os aventureiros que discursam sobre a
pureza ideológica.
Alcolumbre na presidência do Congresso
é a manutenção do status quo - numa conjuntura em que o poder legislativo tem
sido bastante aviltado nas suas funções essenciais.
Os julgadores de plantão vão então para
a guerra sangrenta: uns tratando como óbvio que o melhor é apoiar o vencedor
inevitável, por pragmatismo - e “cancelando” como lunáticos os que não acham
isso - e outros tratando como óbvio que o melhor é romper ou se afastar do
vencedor, pelo que ele representa - e “cancelando” como vendidos os que não
acham isso.
Para os autoritários de teclado e
microfone, tudo é muito simples. E a pureza está em não tolerar nem transigir
um milímetro com os que não recitarem seu enunciado matador. Aí está o
combustível do autoritarismo que todos eles dizem combater.