Há 50 anos, em 1975, Renato Manfredini
Júnior foi diagnosticado com epifisiólise, uma doença óssea rara que o deixou
preso a uma cama por seis meses e com dificuldades de locomoção por dois anos.
Neste período, o piá de 15 anos leu muita coisa, escutou mais ainda e escreveu
um romance sobre uma fictícia banda de rock intitulada The 42nd Street Band,
cujo vocalista nomeou como Eric Russell, um alter ego daquele que anos depois se
chamaria Renato Russo.
As semelhanças entre a história da sua
futura banda, Legião Urbana, e o imaginado para a The 42nd Street Band, são
evidentes a quem leia aquele escrito (que foi publicado pela Companhia das
Letras). Impressiona o quanto, desde adolescente, Renato Russo sabia não apenas
o que queria ser e fazer, mas como isso poderia (ou deveria) acontecer.
Daquela turma de Brasília sairiam três
das principais bandas do rock nacional dos anos 1980: a própria Legião Urbana,
Capital Inicial e Plebe Rude. Dinho Ouro Preto, vocalista do Capital, costuma
dizer em entrevistas que se arrepende de não ter dito a Renato em vida o quanto
ele era o melhor da turma e Philippe Seabra, criador da Plebe, lançou
recentemente sua autobiografia na qual afirma que somente “Renato via algo que
nós não víamos, um movimento e se preocupava com a função de cada banda e de
como o conjunto afetava uns aos outros.”
Tanto era assim que Renato Russo
mantinha anotações avaliando cada banda e integrantes, seus pontos fortes e
fracos, no que deveriam melhorar. Do Aborto Elétrico, por exemplo, a primeira
banda de Renato, apontou como pontos fracos o trabalho de guitarra e a
monotonia da estrutura das canções. Da Plebe Rude, os pontos fracos seriam os
vocais, a competitividade entre os integrantes e uma falta de interesse somada
a uma atitude displicente.
Será que vamos conseguir
vencer? Esse contexto biográfico de Renato Russo e sua turma ajuda a
compreender melhor o disco de estreia da Legião Urbana, que completou 40 anos
semanas atrás. Renato não era apenas o vocalista e letrista de todas as músicas
da banda, mas também, à exceção do disco póstumo, quem definia a ordem das
canções, pensando na sequência ideal de audição e na forma final, partindo da
escolha das músicas de abertura e encerramento, que melhor revelam o sentido de
cada disco.
Neste de estreia, Será e Por Enquanto
criam a fôrma dentro da qual as demais músicas encontram seu lugar e propósito.
O famoso refrão de Será revela o todo: “Será só imaginação?/ Será que nada vai
acontecer?/ Será que é tudo isso em vão?/ Será que vamos conseguir vencer?”.
Renato canta, antes de tudo, sobre a turma, sobre sua banda, sobre si, sobre o
momento que viviam, da grande chance que lhes foi dada e estavam aproveitando,
daquelas que só acontecem uma vez. (Vídeo~~~)
É importante destacar que Por Enquanto
foi composta durante as gravações do disco, que não foram fáceis e demoraram
mais do que o esperado. A gravadora descobriu a Legião graças aos Paralamas do
Sucesso, que embora seja uma banda formada no Rio de Janeiro, tem dois dos seus
três integrantes vindos daquela turma de Brasília: Bi Ribeiro e Herbert Vianna.
Os Paralamas gravaram uma música de Renato Russo (Química) no seu disco de
estreia e tendo sua participação em outra (O Que Eu Não Disse). Os produtores
da gravadora se impressionaram e queriam saber mais sobre ele.
Herbert, então, entregou uma fita demo
de Renato Russo cantando sozinho ao violão as músicas de sua fase Trovador
Solitário, como Eduardo e Mônica. Acharam que a Legião seria uma banda folk ou
de country rock e se prepararam para gravar algo assim, não esperando que
viesse uma banda com um pé no punk e outro no pós-punk. Foram vários conflitos
sobre a sonoridade da banda com os produtores, que foram trocados algumas vezes
no processo de gravação, com a banda chegando a desistir e sendo convencida a
ficar apenas pelo gerente de repertório da EMI à época, Mayrton Bahia.
Por Enquanto reflete esse desgaste das
gravações, o cansaço daqueles jovens de 20 e poucos anos com a sensação de que
talvez não tenha dado certo, que o disco não sairia como gostariam e acabaria
tudo sido em vão: “Mesmo com tantos motivos/ Pra deixar tudo como está/ E nem
desistir, nem tentar/ Agora tanto faz/ Estamos indo de volta/ Pra casa”.
Angústia existencial: Essa
ansiedade, fruto desse desejo e dúvida sobre o futuro, se conseguiriam vencer,
é universal, é o drama de qualquer adolescente em transição para o adulto que
ainda não é, com o seu senso de urgência por ser e fazer algo na vida se tornando
uma angústia existencial. É o que dá forma ao disco, ainda que expresse essa
angústia de maneira mais suave do que a banda gostaria.
(Aliás, se o leitor quiser ter uma
ideia do quão mais “pesado” era o som da banda, escute a edição comemorativa do
disco lançada em seu aniversário de 30 anos, disponível nos serviços de
streaming. Há demos e outtakes de várias músicas, como Será e Geração
Coca-Cola, em que se pode perceber o que a banda desejava e comparar com o
resultado final, que é diferente, mas não pior. Ao contrário, o resultado final
até tem mais a ver com a sonoridade dos discos futuros da banda do que com o
punk adolescente que já vinham substituindo por um pós-punk mais melódico.)
Há uma dimensão desse drama que se
volta ao passado, ao que se viveu na infância ou na escola e aparece como algo
encerrado, ao que não se volta mais, como retratado em A Dança (É só questão de
idade/ Passando dessa fase/ Tanto fez e tanto faz), O Reggae (Me pediram para
ter paciência/ Falhei/ Gritaram: cresça e apareça!/ Cresci e apareci e não vi
nada), Soldados (Se lembra quando era só brincadeira/ Fingir ser soldado a
tarde inteira?). (Vídeo~~~)
Daí a necessidade de pertencimento que,
em acontecendo, fornece um senso de identidade emprestado do grupo de que se
faz parte, como era o caso da turma de Brasília cuja proximidade se deu pela
música, em particular pela estética e atitude punk de meados dos anos 1970. É o
que se canta em Petróleo do Futuro (Ah, se eu soubesse lhe dizer qual é a sua
tribo/ Também saberia qual é a minha/ Mas você também não sabe) e Geração
Coca-Cola (Somos os filhos da revolução/ Somos burgueses sem religião/ Somos o
futuro da nação/ Geração Coca-Cola).
A chegada da maturidade: Entretanto, é
inevitável que nesse processo de amadurecimento o pertencimento grupal se torne
também insuficiente, com a exigência de personalização se tornando uma jornada
individual em que as conquistas exteriores (como, por exemplo, passar no
vestibular, formar-se, ter um emprego, casa própria, etc) precisam corresponder
a uma conquista interior de uma personalidade que se constrói também com as
derrotas, com o que parece ter sido em vão, mas nunca é.
É quando aportamos em Por Enquanto
(aliás, responsável pelo reconhecimento nacional de Cássia Eller no futuro, que
surgiu com uma versão dessa canção). A música é introspectiva, com o eu lírico
refletindo sobre o desafio enfrentado e percebendo que, ainda que não tenha
vencido e nada pareça ter mudado, algo mudou mesmo assim: “Mudaram as estações/
Nada mudou/ Mas eu sei que alguma coisa aconteceu/ Está tudo assim tão
diferente”. O que exatamente mudou é “por dentro” e às vezes leva-se a vida
toda para conseguir expressar o que seja e terá a forma do que chamamos de
maturidade.
É significativo que em apenas uma
música da Legião, Renato Russo não conseguiu colocar sua voz, deixando apenas a
letra. Trata-se de Sagrado Coração, a última da banda no disco póstumo Uma
Outra Estação (Travessia do Eixão que encerra o disco é uma versão), em que
cantaria: “Por isso lhe peço por favor/ Pense em mim, ore por mim/ E me diga/
Este lugar distante está dentro de você/ E me diga que nossa vida é luz/ Me
fale do sagrado coração/ Porque eu preciso de ajuda”.
Conhecendo o final de sua história, o
início ganha mais significado. Será, em retrospecto, ganha respostas às suas
perguntas, como: “Será que vamos ter de responder/ Pelos erros a mais, eu e
você?”. Vamos, sim, e Renato respondeu, não só pelos erros, mas pelos acertos
também. A Legião Urbana não existe há quase 30 anos, mas segue angariando fãs
justamente por causa desse lugar distante que está dentro de cada um e para onde
as músicas da banda nos conduzem. Por isso, não foi só imaginação, muito menos
foi tudo em vão. Quando é pra sempre, nunca acaba.