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Os 40 anos da estreia da Legião Urbana e os 65 anos que Renato Russo faria hoje

Os 40 anos da estreia da Legião Urbana e os 65 anos que Renato Russo faria hoje

Há 50 anos, em 1975, Renato Manfredini Júnior foi diagnosticado com epifisiólise, uma doença óssea rara que o deixou preso a uma cama por seis meses e com dificuldades de locomoção por dois anos. Neste período, o piá de 15 anos leu muita coisa, escutou mais ainda e escreveu um romance sobre uma fictícia banda de rock intitulada The 42nd Street Band, cujo vocalista nomeou como Eric Russell, um alter ego daquele que anos depois se chamaria Renato Russo.

As semelhanças entre a história da sua futura banda, Legião Urbana, e o imaginado para a The 42nd Street Band, são evidentes a quem leia aquele escrito (que foi publicado pela Companhia das Letras). Impressiona o quanto, desde adolescente, Renato Russo sabia não apenas o que queria ser e fazer, mas como isso poderia (ou deveria) acontecer.

Daquela turma de Brasília sairiam três das principais bandas do rock nacional dos anos 1980: a própria Legião Urbana, Capital Inicial e Plebe Rude. Dinho Ouro Preto, vocalista do Capital, costuma dizer em entrevistas que se arrepende de não ter dito a Renato em vida o quanto ele era o melhor da turma e Philippe Seabra, criador da Plebe, lançou recentemente sua autobiografia na qual afirma que somente “Renato via algo que nós não víamos, um movimento e se preocupava com a função de cada banda e de como o conjunto afetava uns aos outros.”

Tanto era assim que Renato Russo mantinha anotações avaliando cada banda e integrantes, seus pontos fortes e fracos, no que deveriam melhorar. Do Aborto Elétrico, por exemplo, a primeira banda de Renato, apontou como pontos fracos o trabalho de guitarra e a monotonia da estrutura das canções. Da Plebe Rude, os pontos fracos seriam os vocais, a competitividade entre os integrantes e uma falta de interesse somada a uma atitude displicente.

Será que vamos conseguir vencer? Esse contexto biográfico de Renato Russo e sua turma ajuda a compreender melhor o disco de estreia da Legião Urbana, que completou 40 anos semanas atrás. Renato não era apenas o vocalista e letrista de todas as músicas da banda, mas também, à exceção do disco póstumo, quem definia a ordem das canções, pensando na sequência ideal de audição e na forma final, partindo da escolha das músicas de abertura e encerramento, que melhor revelam o sentido de cada disco.

Neste de estreia, Será e Por Enquanto criam a fôrma dentro da qual as demais músicas encontram seu lugar e propósito. O famoso refrão de Será revela o todo: “Será só imaginação?/ Será que nada vai acontecer?/ Será que é tudo isso em vão?/ Será que vamos conseguir vencer?”. Renato canta, antes de tudo, sobre a turma, sobre sua banda, sobre si, sobre o momento que viviam, da grande chance que lhes foi dada e estavam aproveitando, daquelas que só acontecem uma vez. (Vídeo~~~)

Nesse sentido, o título de Ainda É Cedo fala por si, não tratando apenas do que uma menina lhe ensinou, mas principalmente retratando o que se sente quando se está a viver o que sempre desejou e não quer que termine, ideia que retorna em Teorema: “Não vá embora, fique um pouco mais”. Nesse contexto, a melancólica Por Enquanto significa o término desse momento e o temor de que não existam outros: “Se lembra quando a gente/ Chegou um dia a acreditar/ Que tudo era pra sempre/ Sem saber que o pra sempre/ Sempre acaba?”.

É importante destacar que Por Enquanto foi composta durante as gravações do disco, que não foram fáceis e demoraram mais do que o esperado. A gravadora descobriu a Legião graças aos Paralamas do Sucesso, que embora seja uma banda formada no Rio de Janeiro, tem dois dos seus três integrantes vindos daquela turma de Brasília: Bi Ribeiro e Herbert Vianna. Os Paralamas gravaram uma música de Renato Russo (Química) no seu disco de estreia e tendo sua participação em outra (O Que Eu Não Disse). Os produtores da gravadora se impressionaram e queriam saber mais sobre ele.

Herbert, então, entregou uma fita demo de Renato Russo cantando sozinho ao violão as músicas de sua fase Trovador Solitário, como Eduardo e Mônica. Acharam que a Legião seria uma banda folk ou de country rock e se prepararam para gravar algo assim, não esperando que viesse uma banda com um pé no punk e outro no pós-punk. Foram vários conflitos sobre a sonoridade da banda com os produtores, que foram trocados algumas vezes no processo de gravação, com a banda chegando a desistir e sendo convencida a ficar apenas pelo gerente de repertório da EMI à época, Mayrton Bahia.

Por Enquanto reflete esse desgaste das gravações, o cansaço daqueles jovens de 20 e poucos anos com a sensação de que talvez não tenha dado certo, que o disco não sairia como gostariam e acabaria tudo sido em vão: “Mesmo com tantos motivos/ Pra deixar tudo como está/ E nem desistir, nem tentar/ Agora tanto faz/ Estamos indo de volta/ Pra casa”.

Angústia existencial: Essa ansiedade, fruto desse desejo e dúvida sobre o futuro, se conseguiriam vencer, é universal, é o drama de qualquer adolescente em transição para o adulto que ainda não é, com o seu senso de urgência por ser e fazer algo na vida se tornando uma angústia existencial. É o que dá forma ao disco, ainda que expresse essa angústia de maneira mais suave do que a banda gostaria.

(Aliás, se o leitor quiser ter uma ideia do quão mais “pesado” era o som da banda, escute a edição comemorativa do disco lançada em seu aniversário de 30 anos, disponível nos serviços de streaming. Há demos e outtakes de várias músicas, como Será e Geração Coca-Cola, em que se pode perceber o que a banda desejava e comparar com o resultado final, que é diferente, mas não pior. Ao contrário, o resultado final até tem mais a ver com a sonoridade dos discos futuros da banda do que com o punk adolescente que já vinham substituindo por um pós-punk mais melódico.)

Há uma dimensão desse drama que se volta ao passado, ao que se viveu na infância ou na escola e aparece como algo encerrado, ao que não se volta mais, como retratado em A Dança (É só questão de idade/ Passando dessa fase/ Tanto fez e tanto faz), O Reggae (Me pediram para ter paciência/ Falhei/ Gritaram: cresça e apareça!/ Cresci e apareci e não vi nada), Soldados (Se lembra quando era só brincadeira/ Fingir ser soldado a tarde inteira?). (Vídeo~~~)

Não se é mais criança, mas tampouco adulto e essa sensação de “não ser ainda” provoca a angústia típica dessa fase da vida, aparecendo com mais protagonismo em Perdidos no Espaço (E a mudança levou tempo por ser tão veloz/ Enquanto estávamos a salvo/ Ficamos suspensos/ Perdidos no espaço) e Baader-Meinhof Blues (Já estou cheio de me sentir vazio/ Meu corpo é quente e estou sentindo frio).

Daí a necessidade de pertencimento que, em acontecendo, fornece um senso de identidade emprestado do grupo de que se faz parte, como era o caso da turma de Brasília cuja proximidade se deu pela música, em particular pela estética e atitude punk de meados dos anos 1970. É o que se canta em Petróleo do Futuro (Ah, se eu soubesse lhe dizer qual é a sua tribo/ Também saberia qual é a minha/ Mas você também não sabe) e Geração Coca-Cola (Somos os filhos da revolução/ Somos burgueses sem religião/ Somos o futuro da nação/ Geração Coca-Cola).

A chegada da maturidade: Entretanto, é inevitável que nesse processo de amadurecimento o pertencimento grupal se torne também insuficiente, com a exigência de personalização se tornando uma jornada individual em que as conquistas exteriores (como, por exemplo, passar no vestibular, formar-se, ter um emprego, casa própria, etc) precisam corresponder a uma conquista interior de uma personalidade que se constrói também com as derrotas, com o que parece ter sido em vão, mas nunca é.

É quando aportamos em Por Enquanto (aliás, responsável pelo reconhecimento nacional de Cássia Eller no futuro, que surgiu com uma versão dessa canção). A música é introspectiva, com o eu lírico refletindo sobre o desafio enfrentado e percebendo que, ainda que não tenha vencido e nada pareça ter mudado, algo mudou mesmo assim: “Mudaram as estações/ Nada mudou/ Mas eu sei que alguma coisa aconteceu/ Está tudo assim tão diferente”. O que exatamente mudou é “por dentro” e às vezes leva-se a vida toda para conseguir expressar o que seja e terá a forma do que chamamos de maturidade.

Renato Manfredini Júnior faria 65 anos de vida neste 25 de março, mas infelizmente se foi cedo demais, aos 36, perdido entre os monstros de sua própria criação. Criação que ele nunca deixou de fazer nascer desde esse “dentro” que, embora rico, era atormentado por uma carência imensa de meninos e meninas, pelo abuso no uso de álcool e drogas e uma depressão profunda (sua mãe considera que ele morreu mais disso do que por consequência da AIDS). Renato Rocha, Renato Russo, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá em imagem famosa da banda. (Foto: Reprodução LP)

É significativo que em apenas uma música da Legião, Renato Russo não conseguiu colocar sua voz, deixando apenas a letra. Trata-se de Sagrado Coração, a última da banda no disco póstumo Uma Outra Estação (Travessia do Eixão que encerra o disco é uma versão), em que cantaria: “Por isso lhe peço por favor/ Pense em mim, ore por mim/ E me diga/ Este lugar distante está dentro de você/ E me diga que nossa vida é luz/ Me fale do sagrado coração/ Porque eu preciso de ajuda”.

Conhecendo o final de sua história, o início ganha mais significado. Será, em retrospecto, ganha respostas às suas perguntas, como: “Será que vamos ter de responder/ Pelos erros a mais, eu e você?”. Vamos, sim, e Renato respondeu, não só pelos erros, mas pelos acertos também. A Legião Urbana não existe há quase 30 anos, mas segue angariando fãs justamente por causa desse lugar distante que está dentro de cada um e para onde as músicas da banda nos conduzem. Por isso, não foi só imaginação, muito menos foi tudo em vão. Quando é pra sempre, nunca acaba.


Francisco Escorsim, especial para a Gazeta do Povo




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