Brasília e o sonho que persiste no concreto
Há cidades que apenas crescem, e há cidades que carregam consigo a vocação de pensar o mundo. Brasília, com todas as suas contradições, pertence ao segundo grupo. Desde o primeiro risco no papel de Lucio Costa até a última curva branca traçada por Niemeyer, a capital federal jamais foi apenas um conjunto de edifícios — foi ideia, gesto simbólico, tentativa. Agora, mais uma vez, ela se prepara para sediar uma conversa sobre o futuro. Nessa última terça-feira (27), o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Crea-DF) foi palco do lançamento da 4ª edição do Fórum Mundial Niemeyer, um evento que convidou arquitetos, urbanistas, engenheiros, juristas e pensadores a discutirem os rumos da cidade contemporânea.
A proposta não poderia encontrar cenário mais sugestivo. Brasília é, ao mesmo tempo, modelo e advertência. Seu desenho monumental, pensado para projetar a racionalidade administrativa do país, convive com os desafios reais de uma metrópole desigual e fragmentada. Ela inspira tanto quanto desconcerta. Talvez por isso, a escolha da capital para dar início às reflexões do Fórum carrega mais do que valor simbólico — é um convite a revisitar as promessas do passado à luz das urgências do presente.
Nesta edição, o tema gira em torno das “cidades do futuro e da sociedade”. E se há algo que o Brasil precisa cultivar é a capacidade de imaginar futuros. Falar de urbanismo, hoje, não é apenas tratar de infraestrutura, mas de convivência, bem-estar, pertencimento. É discutir como o espaço molda relações e como as decisões técnicas podem — e devem — dialogar com as demandas humanas. A presença do ministro Gilmar Mendes, por exemplo, empossado como vice-presidente de honra do Instituto Niemeyer, reforça essa interseção entre o urbano e o jurídico, entre forma e norma, entre chão e instituição.
Mas não se trata de um fórum voltado apenas à elite técnica ou acadêmica. O gesto de tornar o evento gratuito e aberto ao público (ainda que com vagas limitadas) sinaliza o desejo de incluir a sociedade nessa conversa. Uma cidade justa começa por uma cidade que escuta. E o Fórum, com seu espírito de encontro e troca, oferece uma rara oportunidade de pensar a cidade como bem comum, como construção coletiva e não apenas obra finalizada.
É fácil esquecer, diante dos impasses da política ou da pressa cotidiana, que a cidade em que vivemos é também uma narrativa. Cada praça, cada viaduto, cada eixo ou sombra projetada conta uma história sobre quem fomos e quem gostaríamos de ser. E Brasília, com sua monumentalidade quase onírica, ainda provoca a imaginação coletiva. Nela, o urbanismo flerta com a utopia, a engenharia conversa com o direito e a arquitetura tenta, às vezes com sucesso, às vezes com descompasso, desenhar uma ideia de país.
Eventos da magnitude e da relevância do Fórum Mundial Niemeyer talvez não possam solucionar magicamente todos os intrincados dilemas que afligem as cidades contemporâneas — as persistentes desigualdades socioespaciais, os desafios ambientais que clamam por soluções urgentes, as complexas questões de mobilidade e acessibilidade, entre tantos outros. Contudo, sua importância reside precisamente em nos recordar, de maneira contundente, da necessidade inadiável de manter acesa a chama da indagação, de continuar formulando as perguntas essenciais que nos impelem a refletir criticamente sobre o espaço que habitamos e que molda nossas vidas. Como conciliar a imperiosa necessidade de preservar a identidade singular de nossos centros urbanos com as inevitáveis dinâmicas da mudança e da inovação? Como promover um crescimento urbano que seja simultaneamente sustentável e inclusivo sem obliterar as marcas significativas do que já existe, da história inscrita em cada rua e em cada edifício?
Em tempos particularmente suscetíveis à prevalência do pragmatismo e à atração pela tecnocracia como solução universal, a capacidade de formular essas perguntas e de manter vivo o debate sobre os rumos do urbanismo representa, em si mesma, uma demonstração de resistência intelectual, uma afirmação da importância da reflexão crítica e da visão de longo prazo na construção de um futuro urbano mais promissor e equitativo.
Talvez seja esse o legado mais importante de Niemeyer: a recusa em ver o espaço como mera função, e o insistente convite a enxergar beleza, simbolismo e política no desenho das coisas. Brasília ainda carrega essa centelha. Que o Fórum a reacenda — com ideias, não apenas homenagens.
A frase que foi pronunciada:
“Um cientista que também é um ser humano não deve descansar enquanto o conhecimento que pode reduzir o sofrimento repousa em uma estante”.
Albert Sabin
Circe Cunha e Mamfil – Coluna “Visto, lido e ouvido “ – Ari Cunha - Imagem: TikTok/Reprodução - Praça dos 3 Poderes. Fotos: Tony Winston/Agência Brasília/Divulgação - publicada no site oficial da Fazenda Malunga – Correio Braziliense