O presidente do Supremo Tribunal
Federal (STF), Luís Roberto Barroso, parece ter desenvolvido algum tipo de
ideia fixa em torno da palavra “civilização” e de seus derivados. A recorrência
é especialmente notável quando o tema é a liberdade – em geral ou na área
específica da liberdade de expressão nas redes sociais. Experimente tocar no
assunto – o ministro, nove vezes em dez, vai falar em “civilização”,
“civilidade”, “recivilizar”.
É mais ou menos como se pronunciar a
favor da saúde e contra a doença – quem poderia discordar disso? Alguém, por
acaso, quer a volta à Idade da Pedra Lascada? Não há razão para ficar repetindo
sempre uma obviedade tão óbvia – a menos que haja. Se alguém não para de fazer
manifestos em prol da civilização, começa-se a desconfiar que alguém poderia
estar a favor da barbárie. E se esse alguém, na prática, fosse justamente o
autor dos pronunciamentos?
O ministro Barroso do STF nos propõe um
enigma. Ele é, declaradamente, a favor da liberdade de manifestação do
pensamento. Ao mesmo tempo, é contra a liberdade de manifestação nas redes
sociais. O resultado é uma situação racionalmente insolúvel. Liberdade é
liberdade, como outras ideias básicas do espírito humano: “vida”, “amor”,
“honra”. Não pode ser decomposta e distribuída em gavetas de farmácia, com
recomendações sobre “como usar” e com dosagens científicas.
"O que acaba com a incivilidade é a
aplicação da lei, regra fundamental das repúblicas, e não os despachos
ideológicos de juízes que jamais receberam um voto na vida. Há, sim, civilidade
no uso das redes sociais brasileiras, porque há leis às quais elas se
subordinam"
Ou há liberdade de expressão nas redes
sociais ou não há; se houver restrições, não haverá redes livres. Está aí o
começo, o meio e o fim da história. Não é possível esperar que as restrições
venham do céu e tenham infalibilidade divina. Elas terão, obrigatoriamente, de
ser escritas por alguém – e esse alguém será o Estado em alguma de suas
“personas”, algo tão certo quanto o sol e a chuva.
A liberdade de manifestação é uma
conquista do ser humano, como a linguagem escrita e o direito à vida. Não pode
ser reduzida a uma concessão a ser dada ou negada pelo Estado, como um alvará
para o horário de funcionamento das padarias. Mais que tudo, é de uma pretensão
infinita achar que funcionários ou mandarins do Estado tenham mais capacidade
ou mais competência para estabelecer o que é verdade ou mentira, realidade ou malícia,
certo e errado, do que você ou seu vizinho.
O presidente do STF diz que a
regulamentação das redes sociais, que acaba de ser ilegalmente imposta ao
Brasil, acabará com a “incivilidade” na internet. É falso. O que acaba com a
incivilidade é a aplicação da lei, regra fundamental das repúblicas, e não os
despachos ideológicos de juízes que jamais receberam um voto na vida. Há, sim,
civilidade no uso das redes sociais brasileiras, porque há leis às quais elas
se subordinam. Quem está criando a incivilidade é o STF, que declara
“inconstitucional” a aplicação das leis existentes.
Todo o debate sobre a internet, na
verdade, está fundamentado nessa contrafação, tão mentirosa quanto arrogante: a
de que as redes sociais são uma “terra sem lei” explorada por “multinacionais”
que têm um “projeto de direita” e só buscam o “lucro”. Não é nada disso. As
redes estão sujeitas ao Marco Civil da Internet e a todo o resto da legislação
que já protege o cidadão de qualquer delito que venha a ser cometido pelo uso
do direito à livre palavra.
O que o STF fez, em nome do avanço
“civilizatório” e para desfrute da máquina estatal, foi eliminar do Marco
Civil, justamente, o artigo que impedia a censura imposta pelo guarda da
esquina – só por decisão judicial, dizia-se ali, alguma postagem nas redes
poderia ser proibida. A internet tinha lei, sim. Mas era uma lei da qual o STF,
o governo e a esquerda não gostavam. Cria-se uma lei fora do Congresso, então.
De um tribunal de Justiça em que o
ministro Gilmar Mendes diz que “todos nós admiramos” o sistema “chinês” de
tratar com a liberdade de expressão, pode-se esperar tudo e qualquer coisa – a
começar pela censura disfarçada de “civilidade”.