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Luís Roberto Barroso, o ministro que adora contos de fadas sobre democracia

Luís Roberto Barroso, o ministro que adora contos de fadas sobre democracia

Lembro-me da primeira vez em que li Cândido ou O Otimismo, de Voltaire, na sétima série do Colégio Estadual José Elias da Rocha. Não, não foi obrigação, antes que alguém pergunte. Na época, estava mesmo encantada com o Iluminismo francês, especialmente com Voltaire e seu sarcástico humor. Coisas da juventude. O livro, para quem não conhece (e recomendo a leitura), conta a história de um jovem chamado Cândido que passa por pitorescas aventuras, cada vez mais horrendas, mas que as enfrenta – ao menos até boa parte do livro – com otimismo, afirmando que vivemos no melhor dos mundos possíveis e que tudo está bem, satirizando as ideias do filósofo Leibniz. Não sei muito bem por quê, mas o livro me veio à memória ao ler a cartinha escrita pelo ministro supremo Luís Roberto Barroso em suposta resposta a Donald Trump, que anunciou uma taxação absurda de 50% ao Brasil e mencionou decisões abusivas do STF contra a liberdade de expressão e os direitos constitucionais, num clima de caça às bruxas.


O ministro, por óbvio, se melindrou por alguém ter tido a pachorra de questionar os inestimáveis serviços do Supremo Poder em defesa da democracia brasileira. Se fosse um alguém qualquer, talvez o ministro respondesse da mesma forma como já fez em outras ocasiões: chamando o interlocutor de ignorante, inculto, incivilizado, incapaz de reconhecer a virtuosíssima virtude do STF e suas ações dos últimos anos para empurrar o Brasil na direção certa. Mas Trump não é um Zé-Ninguém qualquer: é o presidente da maior economia do mundo. Melhor responder de forma “civilizada”.


"Mesmo sendo cantado em verso e prosa por muitos, incluindo os próprios ministros – que podem genuinamente acreditar nele –, o mito do empenho heroico do STF contra os malvados inimigos da democracia não passa disso: um mito"


Num tom de professor de jardim de infância contando história da carochinha, Barroso tenta explicar que Trump foi “enganado”, que suas críticas ao STF foram baseadas em uma “compreensão imprecisa dos fatos ocorridos no país”, e que o Supremo – oh, esse incompreendido! – só faz tudo o que faz em nome da defesa intransigente da democracia, sempre observando “estritamente o devido processo legal, com absoluta transparência”. Nessa parte, algumas centenas de processados pelo STF devem ter rido. De nervoso.


Chamando de “fatos” a sua versão da história, e alertando que ninguém tem “o direito de torcer a verdade ou negar fatos concretos que todos viram e viveram”, Barroso viaja ainda mais longe, dizendo que “no Brasil de hoje, não se persegue ninguém. Realiza-se a justiça”; ou ainda que o “STF tem protegido firmemente o direito à livre expressão”. 


Para mais pérolas barrosísticas, (*)  Leia a carta de Barroso, na íntegra

Em 9 de julho último, foram anunciadas sanções que seriam aplicadas ao Brasil, por um tradicional parceiro comercial, fundadas em compreensão imprecisa dos fatos ocorridos no país nos últimos anos. Cabia ao Executivo e, particularmente, à Diplomacia – não ao Judiciário – conduzir as respostas políticas imediatas, ainda no calor dos acontecimentos. Passada a reação inicial, considero de meu dever, como chefe do Poder Judiciário, proceder à reconstituição serena dos fatos relevantes da história recente do Brasil e, sobretudo, da atuação do Supremo Tribunal Federal.


As diferentes visões de mundo nas sociedades abertas e democráticas fazem parte da vida e é bom que seja assim. Mas não dão a ninguém o direito de torcer a verdade ou negar fatos concretos que todos viram e viveram. A democracia tem lugar para conservadores, liberais e progressistas.


A oposição e a alternância no poder são da essência do regime. Porém, a vida ética deve ser vivida com valores, boa-fé e a busca sincera pela verdade. Para que cada um forme a sua própria opinião sobre o que é certo, justo e legítimo, segue uma descrição factual e objetiva da realidade.


Começando em 1985, temos 40 anos de estabilidade institucional, com sucessivas eleições livres e limpas e plenitude das liberdades individuais. Só o que constitui crime tem sido reprimido. Não se deve desconsiderar a importância dessa conquista, num país que viveu, ao longo da história, sucessivas quebras da legalidade constitucional, em épocas diversas.


Essas rupturas ou tentativas de ruptura institucional incluem, apenas nos últimos 90 anos: a Intentona Comunista de 1935, o golpe do Estado Novo de 1937, a destituição de Getúlio Vargas em1945, o contragolpe preventivo do Marechal Lott em 1955, a destituição de João Goulart em 1964, o Ato Institucional nº 5 em1968, o impedimento à posse de Pedro Aleixo e a outorga de uma nova Constituição em 1969, os anos de chumbo até 1973 e o fechamento do Congresso, por Geisel, em 1977.


Levamos muito tempo para superar os ciclos do atraso. A preservação do Estado democrático de direito tornou-se um dos bens mais preciosos da nossa geração. Mas não foram poucas as ameaças.


Nos últimos anos, a partir de 2019, vivemos episódios que incluíram: tentativa de atentado terrorista a bomba no aeroporto de Brasília; tentativa de invasão da sede da Polícia Federal; tentativa de explosão de bomba no Supremo Tribunal Federal (STF); acusações falsas de fraude eleitoral na eleição presidencial; mudança de relatório das Forças Armadas que havia concluído pela ausência de qualquer tipo de fraude nas urnas eletrônicas; ameaças à vida e à integridade física de Ministros do STF, inclusive com pedido de impeachment; acampamentos de milhares de pessoas em portas de quarteis pedindo a deposição do presidente eleito.


E, de acordo com denúncia do Procurador-Geral da República, uma tentativa de golpe que incluía plano para assassinar o Presidente da República, o Vice e um Ministro do Supremo.


Foi necessário um tribunal independente e atuante para evitar o colapso das instituições, como ocorreu em vários países do mundo, do Leste Europeu à América Latina. As ações penais em curso, por crimes diversos contra o Estado democrático de direito, observam estritamente o devido processo legal, com absoluta transparência em todas as fases do julgamento. Sessões públicas, transmitidas pela televisão, acompanhadas por advogados, pela imprensa e pela sociedade.


O julgamento ainda está em curso. A denúncia da Procuradoria da República foi aceita, como de praxe em processos penais em qualquer instância, com base em indícios sérios de crime. Advogados experientes e qualificados ofereceram o contraditório. Há nos autos confissões, áudios, vídeos, textos e outros elementos que visam documentar os fatos. O STF vai julgar com independência e com base nas evidências. Se houver provas, os culpados serão responsabilizados. Se não houver, serão absolvidos. Assim funciona o Estado democrático de direito.


Para quem não viveu uma ditadura ou não a tem na memória, vale relembrar: ali, sim, havia falta de liberdade, tortura, desaparecimentos forçados, fechamento do Congresso e perseguição a juízes. No Brasil de hoje, não se persegue ninguém. Realiza-se a justiça, com base nas provas e respeitado o contraditório.


Como todos os Poderes, numa sociedade aberta e democrática, o Judiciário está sujeito a divergências e críticas. Que se manifestam todo o tempo, sem qualquer grau de repressão. Ao lado das outras instituições, como o Congresso Nacional e o Poder Executivo, o Supremo Tribunal Federal tem desempenhado com sucesso os três grandes papeis que lhe cabem: assegurar o governo da maioria, preservar o Estado democrático de direito e proteger os direitos fundamentais.


Por fim, cabe registrar que todos os meios de comunicação, físicos e virtuais, circulam livremente, sem qualquer forma de censura. O STF tem protegido firmemente o direito à livre expressão: entre outras decisões, declarou inconstitucionais a antiga Lei de Imprensa, editada no regime militar (ADPF 130), as normas eleitorais que restringiam o humor e as críticas a agentes políticos durante as eleições (ADI 4.1451), bem como as que proibiam a divulgação de biografias não autorizadas (ADI 4815). Mais recentemente, assegurou proteção especial a jornalistas contra tentativas de assédio pela via judicial (ADI 6792).


Chamado a decidir casos concretos envolvendo as plataformas digitais, o STF produziu solução moderada, menos rigorosa que a regulação europeia, preservando a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, a liberdade de empresa e os valores constitucionais.


Escapando dos extremos, demos um dos tratamentos mais avançados do mundo ao tema: conteúdos veiculando crimes em geral devem ser removidos por notificação privada; certos conteúdos envolvendo crimes graves, como pornografia infantil e terrorismo devem ser evitados pelos próprios algoritmos; e tudo o mais dependerá de ordem judicial, inclusive no caso de crimes contra honra.É nos momentos difíceis que devemos nos apegar aos valores e princípios que nos unem: soberania, democracia, liberdade e justiça. Como as demais instituições do país, o Judiciário está ao lado dos que trabalham a favor do Brasil e está aqui para defendê-lo.


Ainda que muitos brasileiros não tenham se dado conta até agora do que anda acontecendo por aqui, no estrangeiro as arbitrariedades cometidas no Brasil em nome da tal “defesa da democracia” começam a repercutir. Recentemente, o Wall Street Journal classificou como "alarmante" a deterioração das normas democráticas no Brasil. Trump não é o único – e esperemos que não seja o último – a alertar sobre isso.


Que a democracia no Brasil ande nas últimas – ou tenha acabado mesmo, como alertou a Gazeta do Povo – não é segredo para quem é minimamente informado. Quem se recusa a ver isso ou está deliberadamente escolhendo não ver – seja lá por quais motivos – ou está muito, mas muito enganado, quiçá enfeitiçado pela lorota de que estamos no melhor dos mundos possíveis, e se tornou, ao menos por ora, incapaz de reconhecer o que está diante do seu nariz.


Mesmo sendo cantado em verso e prosa por muitos, incluindo os próprios ministros – que podem genuinamente acreditar nele –, o mito do empenho heroico do STF contra os malvados inimigos da democracia não passa disso: um mito. Um conto de fadas enviesado, em que os cavaleiros reluzentes de capa preta matam terríveis dragões golpistas que cospem críticas virulentas.


Já passou da hora de admitirmos: o Brasil de hoje não é nem de longe o melhor dos mundos possíveis. Como diria Cândido, exausto com os próprios infortúnios: “Nós precisamos cultivar nosso jardim”. Se queremos democracia, liberdade, prosperidade precisaram construí-las com as nossas próprias mãos. A alternativa é cruzar os braços – e aceitar os contos de fada do ministro Barroso como realidade.



Jocelaine Santos - (Foto: Antonio Augusto/STF) - Gazeta do Povo


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