Em 1990, quando a Lei 8.069 instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente, o país ousou declarar que meninos e meninas seriam sujeitos de direitos. Três décadas depois, esse pacto civilizatório encontra sua prova de fogo nas urnas discretas que, em 4 de outubro de 2027, escolherão cerca de 30 mil conselheiros tutelares em todo o Brasil. Serão quatro anos de mandato, sem direito a hesitações: a tarefa é dura, as jornadas são longas, e o peso dos casos, quase sempre insuportável.
O Brasil mantém hoje 5.956 Conselhos, espalhados por 5.559 municípios. No Distrito Federal, serão aproximadamente 200 conselheiros, distribuídos em 40 unidades, todos submetidos ao regime de dedicação exclusiva, muitas vezes estendendo plantões por mais de 30 horas ininterruptas diante de denúncias que ferem a sensibilidade e testam os limites da própria humanidade.
A unificação das eleições, medida recente, nasce de uma tentativa de fortalecer a visibilidade e a credibilidade dessa função. Busca-se induzir a sociedade a reconhecer o peso do cargo que, embora cercado de uma remuneração média de R$ 4,8 mil mensais, esconde sob a cifra uma cilada: a de atrair candidatos desavisados, sem preparo emocional ou técnico, para enfrentar as mazelas que a infância brasileira escancara. A promessa financeira pode ser atrativa; o cotidiano, contudo, é marcado por violência, desamparo e o retrato de um país que ainda não cumpriu o que jurou a seus pequenos.
O Brasil carrega mais de 70 milhões de jovens com menos de 18 anos, grande parte deles vivendo sob condições de vulnerabilidade. Segundo relatório do Unicef em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em 2024, mais de 15 mil crianças e adolescentes foram mortos de forma violenta apenas nos últimos três anos. Isso significa uma média de cinco mil mortes por ano, números que rivalizam com conflitos armados em escala internacional. A violência sexual, por sua vez, atinge proporções perturbadoras: 165 mil vítimas no mesmo período, com registros que saltaram de 46.863 em 2021 para 63.430 em 2023 — um caso a cada oito minutos.
Essas estatísticas não se distribuem ao acaso. A desigualdade racial faz das crianças negras as vítimas mais expostas. Um menino negro de até 19 anos tem 21 vezes mais chance de morrer do que uma menina branca. A geografia da morte também revela padrões: entre adolescentes, a maior parte dos crimes ocorre em via pública e é praticada por desconhecidos; já entre os mais novos, quase metade das mortes acontece dentro de casa, e em 82% dos casos, cometida por pessoas próximas. O lar, que deveria ser espaço de proteção, converte-se em terreno hostil.
Diante desse cenário, os Conselhos Tutelares tornam-se a linha de frente entre a criança e o abismo. O mandato, de natureza essencialmente protetiva, exige preparo técnico, equilíbrio emocional e uma rara coragem cívica. Mas o Estado, ao mesmo tempo em que exige dedicação, falha em fornecer os meios adequados. Muitos conselheiros trabalham em prédios precários, sem equipe de apoio suficiente, com acesso limitado a transporte ou recursos para atender às emergências. É o retrato de uma política pública que se anuncia nobre na letra da lei, mas se revela insuficiente na prática.
Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, assumidos pelo Brasil no plano internacional, incluem metas para reduzir desigualdades, ampliar acesso à educação e garantir vida digna às crianças. No entanto, a distância entre a meta e a realidade é alarmante. Nas regiões mais pobres, menos da metade das crianças conclui o ensino fundamental. O trabalho infantil, embora em queda, ainda atinge cerca de 1,6 milhão de meninos e meninas, segundo dados de 2024. A cada nova eleição, o país se vê diante de uma escolha simbólica: perpetuar a indiferença ou reafirmar o compromisso com a infância. Nesse sentido, a eleição unificada para os Conselhos carrega mais do que a simples definição de nomes em listas. Representa uma oportunidade de a sociedade dizer se reconhece, ou não, que a infância é prioridade absoluta.
É preciso admitir: um Conselho Tutelar não resolve por si só o problema histórico do abandono da infância. Mas ele é, ainda assim, o último bastião de resistência institucional contra a negligência. Quando um conselheiro atua, não defende apenas uma criança em situação de risco: preserva o futuro de uma sociedade inteira. E, ao se omitir, por despreparo ou desatenção, reitera a lógica do descaso que já vitimou gerações.
Os Conselhos Tutelares não são espaços de prestígio político, mas de compromisso ético. Se o futuro de uma nação pode ser medido pela forma como trata seus pequenos, a eleição dos conselheiros tutelares é, talvez, um dos mais importantes pleitos do calendário democrático. Não é apenas o destino de 30 mil cargos que estará em disputa. É o destino de milhões de crianças brasileiras que ainda aguardam para saber se a promessa feita em 1990, de serem sujeitos de direitos será, finalmente, cumprida.