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Longevidade sem Garantia de Dignidade

Longevidade sem Garantia de Dignidade

A expectativa de vida do brasileiro ao nascer chegou, em 2023, a 76,4 anos. O avanço é fruto de décadas de melhorias na medicina, no saneamento, na alimentação e nas políticas de saúde pública. Contudo, para além da conquista estatística, persiste um fato incômodo: o Brasil ainda não se preparou para a realidade de envelhecer bem, incluindo governo, iniciativa privada, sociedade civil e, não raramente, as próprias famílias. Parece que a longevidade e dignidade seguem caminhos que raramente se cruzam.

À medida que o indivíduo avança para a terceira idade, multiplicam-se os obstáculos a uma vida saudável e produtiva. Os ganhos obtidos com a ciência ameaçam ser neutralizados pela negligência social. Não se trata apenas de garantir anos a mais na certidão de nascimento; trata-se de assegurar que esses anos sejam vividos com qualidade. Em um país onde, segundo dados oficiais, 65.488 denúncias de violência contra pessoas idosas foram registradas apenas entre janeiro e abril de 2025 (um crescimento de 38% em relação ao mesmo período em 2023), viver mais também significa correr mais riscos. Esse dado, obviamente, não registra as omissões de lares onde não se imagina a realidade. Realidade essa que assusta quando se constata que 70% das vítimas são mulheres e que a maior parte das agressões ocorre dentro do próprio lar, espaço que deveria representar amparo e segurança.

A violência contra a pessoa idosa, na verdade, não é exclusividade brasileira. Tanto que a Organização das Nações Unidas instituiu, há anos, o Dia Mundial de Conscientização da Violência Contra a Pessoa Idosa (15 de junho). Mas, no Brasil, o problema assume contornos mais severos, pois soma-se a um sistema de proteção insuficiente e a uma cultura que, em vez de valorizar a experiência e a memória, tende a descartá-las. O Estatuto do Idoso, de 2013, foi um marco legislativo, mas segue o destino de outras leis nacionais: o risco de tornar-se letra morta, por ausência de fiscalização e políticas públicas consistentes.

Enquanto isso, as estatísticas demográficas avançam. Em 2023, 15,6% da população brasileira tinha 60 anos ou mais, superando o percentual de jovens entre 15 e 24 anos (14,8%). Há apenas duas décadas, eram 15,2 milhões; hoje, já são 33 milhões de idosos. Uma transformação social dessa magnitude exigiria preparo estratégico, investimento em saúde preventiva, redes de apoio e, sobretudo, mudança cultural. Mas o país parece ainda atônito diante do fenômeno.

A comparação internacional ajuda a dimensionar o desafio: Nos Estados Unidos, levantamento da AARP mostra que 70% das pessoas com 50 anos ou mais planejam viajar em 2025, contra 65% no ano anterior. Em média, cada indivíduo realizou 3,9 viagens em 2024, superando a previsão inicial. Quase metade pretende fazer viagens internacionais. Trata-se de um indicativo de que, para muitos aposentados norte-americanos, a terceira idade é vivida como oportunidade de lazer, descoberta e integração social.

Já na Alemanha e em outros países europeus, onde mais de 21% da população tem 65 anos ou mais, a velhice costuma ser acompanhada por robustos sistemas de bem-estar social, pensões adequadas e acesso universal à saúde de qualidade. Lá, o idoso não é visto como peso econômico, mas como integrante ativo da vida comunitária. Isso permite que continue participando de atividades culturais, viagens e práticas esportivas, mantendo-se saudável física e mentalmente.

O contraste com o Brasil é contundente. Aqui, um número expressivo de aposentados é obrigado a retornar ao trabalho para complementar a renda, enquanto outros veem mais da metade de seus proventos drenados por medicamentos e planos de saúde. Lazer, turismo e cultura tornam-se luxos inalcançáveis. E, em muitos casos, a rede familiar, fragilizada por crises econômicas e transformações sociais, não consegue prover o suporte afetivo e material necessário.

O Estudo Longitudinal das Condições de Saúde e Bem-Estar da População Idosa (ELSI), em andamento há seis anos, busca traçar um retrato abrangente dessa população, cruzando dados e mapeando vulnerabilidades. Mas o diagnóstico, por si só, não basta. É preciso transformar números em ação: ampliar centros de convivência, reforçar programas de saúde integral, promover campanhas de valorização da experiência de vida e treinar profissionais para lidar com as especificidades da terceira idade.

A educação também pode ter papel decisivo. Inserir nas escolas conteúdos sobre envelhecimento e respeito intergeracional ajudaria a formar novas gerações menos propensas à indiferença ou à violência. Afinal, envelhecer é destino comum. A cultura do cuidado não se improvisa; constrói-se com o tempo, o mesmo tempo que, se bem usado, transforma longevidade em verdadeira conquista civilizatória.

Enquanto o Brasil continuar aplaudindo a longevidade apenas como dado estatístico, sem enfrentar a deterioração silenciosa da qualidade de vida, estaremos celebrando uma vitória incompleta. A vida prolongada, quando vivida sob a sombra da violência, da precariedade econômica e da exclusão social, deixa de ser bênção para se tornar sobrevivência. É hora de assumir que envelhecer com dignidade não é privilégio: é direito. E, como todo direito, precisa ser defendido com políticas concretas, recursos consistentes e, acima de tudo, respeito.

A frase que foi pronunciada: “Qualquer um que mantenha a habilidade de enxergar a beleza, não envelhece.” (Franz Kafka)

Circe Cunha e Mamfil –  Coluna “Visto, lido e ouvido” - Ari Cunha - Charge do Genildo - O escritor checo Franz Kafka, aos 23 anos. Foto: brasil.elpais - Correio Braziliense


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