Davi acordou com o despertador. Ele tinha hora para
começar a implementar suas maldades. Costumava passar quase o dia todo nisso.
Tinha dormido pesado, como sempre. A cabeça no travesseiro nunca lhe pesou.
Dormia bem, ainda que pouco, eventualmente. Levantou-se, ainda sonolento, com a
soberba de sempre, as más intenções renovadas, sempre multiplicadas. Movimentou
lentamente o corpanzil até o chuveiro. Mal começara o processo de purificação
superficial, uma limpeza que não passava os poros, escorregou. Foi um tombo
feio, e Davi bateu a cabeça com força no chão, ao cair de costas. Não sangrou,
não chegou a desmaiar. Ficou apenas como esquecido de si mesmo, de quem tinha
sido até ali. A água quente transbordando o umbigo e escorrendo pelas enormes
encostas adiposas abdominais. Barriga bem enxaguada, cabeça e coração
sacudidos...
Inerte por alguns minutos, passou a ter pensamentos
inéditos. Naquela condição, nem percebia totalmente as mudanças. Não esqueceu
seu nome, o cargo que exercia, mas já não tinha acesso a uma parte de si que o
dominara até então. Sim, já não era o mesmo, ainda que não fosse capaz de
perceber a redenção, a evolução, a mágica transformação. Achou até graça de
estar ali, esparramado sobre o mármore. Sorriu de leve e começou, lentamente, a
se levantar. Se a cabeça doía, não pensava nisso. Se uma costela reclamava,
pouco importava. Veio-lhe a sensação de que o dia seria especial, que aquele
momento esperava por ele havia muito tempo. Como se desligara por encanto do
Davi da vida toda, não lhe passou pela cabeça a ideia – improvável, antes do
tombo – de que ele próprio podia ter esperado tempo demais por aquilo que
começava a se estabelecer como numa fábula.
"O país inteiro seria diferente, seria muito melhor,
depois daquele dia que Davi dedicaria finalmente a exercer verdadeiramente o
cargo de presidente do Senado"
Sorriu para si próprio no espelho. Pensou no Brasil de
verdade. O dia, enfim, chegara. A mente reiniciada e o coração enfim aberto o
conduziam como se fosse um herói corriqueiro, responsável, empenhado,
disciplinado, altruísta, humilde. Mesmo que não se lembrasse de tudo de
maravilhoso que tinha realizado até ali... Claro, nada de bom tinha feito, mas
acreditava que sim, que sua vida fora conduzida pelo bem e para o bem desde o
nascimento. Estava leve, como imaginava que sempre tinha sido. Se nunca tivera
remorsos, peso na consciência, continuou não tendo. Pulou essa etapa, no
caminho que não percebia de resgate e salvação. Não apenas dele próprio. O
tombo tinha sido envolvido em magia, em milagre... O país inteiro seria
diferente, seria muito melhor, depois daquele dia que Davi dedicaria finalmente
a exercer verdadeiramente o cargo de presidente do Senado.
Toda a gente que o cercava, em casa e no Congresso,
estranhou seus movimentos, seus gestos, mesmo os mais simples. Havia delicadeza
e preocupação sincera, pronta para acolher quem necessitasse. Toda a gente
estranhou o olhar mais doce, compreensivo, emocionado. Estranhou as palavras
amenas, as frases que indicavam a libertação concretizada dele e a libertação
do país a caminho. Se os assessores, se os cúmplices de outrora se assustaram,
já não parecia haver o que fazer. Era outro Davi, irredutível, tomando o rumo
correto. Até sua respiração mudara. Quando os maus o cercaram, em desespero,
receberam um olhar de estranhamento, que era, então, mútuo, ainda que
antagônico, claro. Era o bem contra o mal, num duelo que Davi não percebia
direito. Ou, se percebia, desprezava, como se soubesse que os perversos não
tinham chance contra ele.
Cansou-se do frenesi, do movimento frenético, dos
carrascos de todos nós. Achou que eram eles que tinham mudado. Se não
estranhava profundamente aquele assédio, não entendia como aquelas pessoas
podiam ter tanta proximidade com ele. Se tinham sempre agido daquela forma, não
poderiam ser seus amigos, seus colegas, seus parceiros. Era muita petulância,
pensou... Davi não fazia parte daquilo. Então, caminhou até a entrada de seu
gabinete, ignorando a balbúrdia. Abriu a porta e, educadamente, pediu que todos
se retirassem. Em poucos minutos, estava sozinho, sentado em sua cadeira. Foi
direto a uma grande gaveta e tirou dela mais de 70 pedidos de impeachment de
ministros do Supremo. Sabia exatamente quais estava procurando. Pegou
três e os deixou sobre a mesa. Sorriu. Era chegada a hora.
No plenário, houve festa da oposição, do Brasil de
verdade, que Davi acompanhou como se fosse também sua. Como se sempre tivesse
sido, desde que o mundo é mundo. Ele acabara de encaminhar a abertura de
processos de impeachment contra três ministros do STF. Fez um belíssimo
discurso, condenando tantos abusos cometidos até então, tantos arbítrios,
tantas ilegalidades... Prometeu justiça. Quase chorou. Foi abraçado e
cumprimentado por aqueles que ele achava que sempre tinham estado ao seu lado,
aqueles que Davi achava que sempre tinham recebido seu apoio. A celebração se
espalhou por todo o país, enquanto a imprensa e o Supremo acusavam Davi de ter
enlouquecido. Não, não tinha. Um tombo havia mudado a história, interrompido
uma maldição. E, de alguma forma, aquela magia tinha de ser eterna... Era
preciso garantir a Davi, a partir dali, uma vida sem tropeços e com acesso
apenas a locais com piso antiderrapante.