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Corredores Estreitos

Corredores Estreitos 

Nada descreve com mais precisão o ambiente político brasileiro contemporâneo do que a sucessão de sinais dispersos que, observados superficialmente, parecem apenas manifestações episódicas de um país acostumado à turbulência, mas que, reunidos num mesmo campo de interpretação, revelam o desenho inquietante de um regime que se fecha paulatinamente sobre a expressão pública e sobre o exercício cotidiano da divergência, num processo lento o suficiente para jamais ser percebido como ruptura abrupta, mas constante o bastante para que cada gesto individual passe a carregar o peso de um risco antes inexistente. Observadores atentos compreendem que previsões intelectuais, outrora tachadas de exageradas, começam a assumir a forma incômoda das constatações inevitáveis, porque, em sociedades submetidas a vigilâncias crescentes, o que era advertência torna-se diagnóstico e o que era hipótese transforma-se em constatação silenciosa. 

Percebe-se, por meio de análises discretas que evitam a clareza excessiva, que antigas indulgências oferecidas a determinados segmentos instalaram, no país, uma cultura de imunidades sucessivas, sustentada por décadas de discursos acadêmicos benevolentes, interpretações seletivas e narrativas culturais que sedimentaram a ideia de que certos atores deveriam ser preservados de qualquer escrutínio rigoroso, não por falta de elementos concretos, mas porque a leitura dominante sempre preferiu justificar infrações políticas alegando a existência de causas supostamente superiores. Construiu-se, dessa forma, uma blindagem que, ao longo do tempo, converteu abusos em hábitos e irregularidades em instrumentos, gerando o ambiente que permitiu. 

Constata-se que, ao ingressarem de maneira estruturada no aparato estatal, esses grupos passaram a expandir gradualmente sua capacidade de vigilância sobre adversários reais ou potenciais, movimento que se realiza sem rupturas aparentes e que faz com que as fronteiras entre o permitido e o punível se tornem maleáveis. Situação semelhante permite que conceitos jurídicos sejam redefinidos com fluidez estratégica, que discursos sejam reinterpretados de acordo com o clima político do momento e que categorias vagas como desinformação, ameaça institucional ou perturbação da ordem ganhem contornos variáveis, sempre aplicados com precisão cirúrgica sobre um único espectro ideológico, enquanto outros grupos seguem resguardados sob justificativas já consagradas pelo uso. 

Percebe-se, desse modo, que pensamentos antes situados no campo natural da dissidência democrática passam a ser tolerados somente quando inofensivos, e que opiniões dissonantes, mesmo formuladas com prudência, começam a migrar para o território do risco subjetivo, território onde cada palavra publicada ou pronunciada precisa ser avaliada em função das possíveis leituras feitas pelos administradores da verdade oficial. Cresce, paralelamente, uma burocracia especializada em modular a interpretação das falas, reclassificar condutas, ajustar fatos às narrativas institucionalmente autorizadas e impor decisões que, acumuladas ao longo do tempo, moldam o espaço público de modo a restringir sem anunciar, vigiar sem admitir, punir sem explicitar. Nada disso exige decretos contundentes ou medidas espetaculares, porque o poder moderno descobriu que a eficácia de seu domínio reside não na construção de muralhas, mas na multiplicação de corredores estreitos que forçam cada cidadão a caminhar em linha rigidamente determinada. 

Escritos outrora zelosos de sua independência e de seu compromisso histórico com o escrutínio rigoroso das ações do poder, parecem aderir por reflexo à lógica do alinhamento compulsório, suavizando palavras, editando silêncios, calibrando críticas para não excederem os limites tácitos do que se tornou aceitável, incorporando definições e rotulações previamente difundidas pelos órgãos oficiais, repetindo categorias que deveriam ser contestadas e aceitando enquadramentos que em outros tempos seriam motivo de editorial contundente. A linguagem metafórica, as alusões indiretas e os circunlóquios calculados tornam-se instrumentos indispensáveis para quem ainda pretende expressar discordância sem incorrer na ira das instituições responsáveis por vigiar, catalogar e enquadrar comportamentos discursivos. A autocensura, antes resíduo psicológico de ambientes repressivos, consolida-se como prática cotidiana que garante, para muitos, não a liberdade, mas a própria sobrevivência profissional e reputacional. 

Sociedade que se habitua a essas formas de regulação afetiva e linguística passa a aceitar, como natural, a ideia de que discordar exige prudência extraordinária, que opinar demanda cálculo, que silenciar se converte em estratégia de autodefesa e que expressar convicções depende de mapear previamente os pontos cegos da vigilância. Cidadãos diversos relatam experiências em que opiniões rotineiras se converteram em motivo de desconforto, investigações intermináveis ou bloqueios administrativos, fenômenos que, embora pontuais em aparência, somam-se como indicadores de que o país atravessa uma fase de redução silenciosa das liberdades, fase em que a democracia preserva sua aparência formal, mas perde camadas sucessivas de substância até tornar-se estrutura decorativa.

A frase que foi pronunciada: “Escrevo para dar asas aos dedos.” (Ari Cunha)


Circe Cunha e Mamfil –  Coluna “Visto, lido e ouvido” - Ari Cunha - Foto: Toninho Tavares/Agência Brasília - 30/09/2013 Crédito: Monique Renne/CB/D.A Press. Brasil. Brasília – DF. Jantar Prêmio Engenho. Ari Cunha. Correio Braziliense 


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