Luminosidade brasiliana
*Por Severino Francisco
Eu tenho a impressão de que, para
a gente amar mesmo uma cidade, ela precisa ser cantada, poetizada, dramatizada
e representada. Sem isso, a cidade paira no espaço, destituída de alma. Não é
tarefa fácil, principalmente em uma capital como Brasília, de apenas 57 anos.
Ela não avança em uma linha reta e contínua sem erros, equívocos e fracassos.
No entanto, aos trancos e barrancos, graças ao espírito experimental e à
tenacidade de alguns artistas, essa mitologia brasiliana vai se esboçando.
Pedro Alvim é um desses artistas
que interagem intensamente com a cidade e levam esse embate para o centro de
sua arte. Ele está apresentando a exposição Lugares e ficções, no Museu dos
Correios (Setor Comercial Sul). Em vez da escala monumental, ele contempla
Brasília a partir das cenas triviais, das ruínas, das trilhas, dos desvios, dos
escombros e dos esqueletos de prédios abandonados. Brasília sempre aparece
velada e revelada como um claro enigma de símbolos e signos a serem decifrados.
O Setor Bancário Norte, o supermercado SuperMaia, os prédios da Esplanada dos
Ministérios ao fundo envolvidos por uma luminosidade crua. Pedro mira a cidade
com um olhar oblíquo e dissimulado.
No entanto, se em exposições
anteriores, a cidade ocupava o primeiro plano, de uma maneira mais explícita,
nessa mostra, ele incorpora novos elementos e torna a trama de referências mais
complexas. A mostra é um passeio por Brasília e, ao mesmo tempo, pela história
da arte. Alvim brinca com a ideia dos clássicos salões de arte do século 19, na
França, apresentados pelo poeta Baudelaire. Promove um salão atemporal em que
cabem lugares, paisagens, memórias, devaneios e ficções.
Mas não é preciso uma visita
guiada por um professor para apreciar a pintura de Pedro Alvim. Aliás, é ele
mesmo quem se encarrega de desmistificar, com senso de humor, qualquer
pretensão didática, por meio de um libreto intitulado Salão de Julho, assinado
adivinhem por quem? Pelo escrachado poeta Zuca Sardan, que mais confunde do que
esclarece o visitante da mostra.
Pedro molha o pincel,
simultaneamente, nas tintas do lirismo, da galhofa e da ironia. Realiza, ao
mesmo tempo, antipintura e pintura da mais alta qualidade. Ele reverencia a
arte da maneira mais irreverente. Algumas telas parecem ter saído diretamente
da lata de lixo da história para a parede da galeria. Pedro faz uma paródia da
arte decorativa, ao emoldurar alguns quadros com pedaços desajeitados de
madeira, cindidos por rachaduras, afixados por pregos desconjuntados, num
arranjo de gambiarra.
No entanto, a pintura na tela é
de extremo apuro, embora tenha sempre o registro nervoso de esboço, de rascunho
e de anotação de viagem precária. A pincelada de Pedro é muito bonita, animada
de ritmo e de luminosidade. Uma luz brasiliana crua nasce do fundo das telas. Saí
da mostra com a sensação de ter visto uma música meio azul, meio verde, meio
alaranjada, com muita poeira misturada a tudo. Já dizia um poeta, cujo nome me
escapa neste momento: a luz traz felicidade.
(*) Severino Francisco - Jornalista, colunista do Correio Braziliense - Foto/Ilustração: Blog - Google
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Sobre momentos e narrativas
Brasília e seus terrenos baldios servem de
inspiração para o pintor Pedro Alvim na série Lugares e ficções
*Por Nahima Maciel
Pedro Alvim é um pintor à moda antiga. Gosta de
sair por aí com o material debaixo do braço, se instalar em algum ponto
discreto e com boa perspectiva, e desenhar ou pintar a paisagem. É fruto dessa
peregrinação boa parte das 45 obras expostas em Lugares e ficções, em cartaz no
Museu dos Correios. Produzidas entre 2007 e 2016, as obras tratam de dois temas
que Alvim costuma encarar como complementares e interligados.
Lugares, na maioria das vezes, são paisagens. Ou,
na concepção do artista, o presente, embora os lugares troquem e mudem de
acordo com o tempo. “As paisagens são registros do presente muito aleatórios, é
o que me impressiona no momento”, explica. Terrenos baldios sempre impressionam
Alvim. Em alguns dos quadros, ele retrata o pouco que resta de locais marcados
pelo vazio, como terrenos do Setor Bancário Norte ou os trilhos abandonados
atrás da Rodoferroviária. Mas ele também gosta do contraste, caso do barro que
convive com o lustre dos prédios espelhados em tempos de chuva na região dos
anexos dos ministérios, paisagem traduzida para a pintura. E do isolamento,
ainda possível de ser encontrado em regiões centrais de Brasília, como o
cartódromo. “O terreno baldio tem esse aspecto de ruína, com aquelas escavações
que vão desenterrando coisas, quase uma coisa de escavação arqueológica mesmo”,
explica.
Já as ficções, Alvim avalia, são situações de maior
estabilidade. “É uma tentativa de dar sentido, como se fossem memórias que se
misturam. A ficção cria uma liga de estabilidade, enquanto as paisagens são
momentos, saltos no tempo”, compara. As pinturas intituladas de ficções muitas
vezes trazem pequenos personagens, figurinhas que insinuam uma história
qualquer. São variações em torno de gêneros temáticos que Alvim tomou
emprestados da própria história da arte, como a paisagem histórica e as cenas
de marinhas e de boemia. As primeiras, por exemplo, podem trazer personagens da
mitologia ou da própria história.
Na exposição, ficções e lugares estão misturados.
Pedro Alvim não as separa nem diferencia, embora haja uma maneira diferente de
trabalhar com cada tema. “A exposição foi pensada um pouco como um salão de
pintura imaginário, à maneira dos salões de arte antigos. Nesses salões as
obras expostas se referiam a histórias que, às vezes, não eram muito fáceis de
identificar, e circulavam “libretos” com textos explicativos e gravuras
reproduzindo as obras”, conta o artista, que contou com a ajuda do também
artista e amigo Zuca para criar poemas-resenhas sobre as pinturas expostas em
um salão fictício que seria a própria exposição. “Editei um libreto com desenhos
e textos meus e do Zuca, e fragmentos de autores como Baudelaire e Diderot, que
escreviam críticas dos salões”, explica.
Paisagens isoladas, terrenos baldios e horizontes de Brasília entram no
repertório visual de Pedro Alvim, que gosta de retratar a cidade
As pinturas também podem levar anos para serem
dadas por encerradas. Algumas das obras expostas no Museu dos Correios também
estiveram na última individual do artista, em 2010. No entanto, não são
exatamente as mesmas. Faz parte da maneira como Alvim trabalha sobrepor camadas
de tinta ao longo dos anos, voltar a quadros, retrabalhar detalhes e até mudar
um composição inteira. “Não são com todos que pinto por cima”, explica. “Faço
isso porque é uma frustração, às vezes. É mais difícil acertar um quadro que
não ficou bom de cara.”
Lugares e ficções
Exposição de pinturas de Pedro Alvim. Visitação até
3 de setembro, de terça a sexta, das 10h às 19h, e sábados, domingos e
deriafos, das 12h às 18h, no Museu dos Correios (SCS - Qd 4, Bloco A)
(*)Nahima Maciel – Correio Braziliense – Fotos: Pedro Alvim – Divulgação
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