As delegacias do Distrito Federal registraram, nos primeiros 50 dias do ano, 65 ocorrências de racismo e de injúria racial, uma média de 1,3 denúncia por dia. A frequência de crimes resultou na criação de uma coordenação especial
Por causa dos seguidos aumentos, a Polícia Civil do DF criou, no início do ano, a Coordenação de Atendimento aos Grupos Vulneráveis. Por enquanto, o núcleo funciona internamente e participa de reuniões com o Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT), com o Tribunal de Justiça do DF e Territórios (TJDFT) e com a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Sepir). Mas a ideia é que o grupo comece a atender diretamente as vítimas de preconceito.
Coordenadora do atendimento, a delegada Sandra Gomes Melo ressalta que a Polícia Civil do DF tem se preparado para trabalhar e atender melhor essas ocorrências. A recomendação é de que as vítimas continuem procurando as delegacias regionais, até que o espaço esteja completamente estruturado. “Temos uma preocupação com esses grupos vulneráveis. É um crime que precisa ser realmente muito exposto. A população precisa estar esclarecida porque ainda é um tabu”, argumenta Sandra.
A delegada afirma que o incremento no número de ocorrências não necessariamente indica aumento na quantidade de delitos. “Isso deve ser visto de forma positiva. É uma mudança de crença e demonstra uma credibilidade no trabalho que vem sendo feito pelos órgãos públicos. E quanto mais trabalharmos os direitos das pessoas e fizermos campanhas esclarecedoras, mais as vítimas confiarão nos serviços públicos e procurarão ajuda”, avalia.
Maioria negra
Dados da Companhia de Planejamento do DF (Codeplan) indicam que a população negra é maioria no DF. No último levantamento, ela representava 54% dos habitantes da capital do país. Mesmo com mais da metade população negra e várias conquistas na luta pela igualdade de direitos (veja Linha do tempo nas páginas 22 e 23), muitos brasilienses ainda passam por vários tipos de constrangimento por causa da cor da pele.
A história da cantora brasiliense Kris Maciel, 36 anos, se confunde facilmente com uma cena fictícia de novela. Depois de se apresentar com a banda dela em São Luís, no Maranhão, Kris embarcou em um avião com destino a Brasília. Antes mesmo dos avisos de decolagem, a cantora foi surpreendida por uma passageira que estava sentada ao seu lado. A mulher disse à comissária que não ficaria ao lado de uma negra. “Fiquei com vergonha, constrangida e quieta, no meu lugar”, contou (veja Depoimentos).
O caso aconteceu em 2008, mas os constrangimentos não ficaram no passado. Há dois meses, Kris foi novamente vítima de preconceito. Depois de uma discussão de trânsito, foi xingada: “Negra safada. Foi disso que ela me xingou. Expôs-me e ainda chamou a polícia dizendo que estava sendo assaltada, que o carro dela estava sendo roubado”. Diferentemente de 5 anos atrás, quando deixou a situação de lado, Kris deu encaminhamento ao caso na delegacia e na Justiça. “Não tenho vergonha de ser negra e não me sinto diferente de ninguém”, afirma.
Para o pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e especialista em discriminação racial Carlos Alberto Santos de Paulo, é preciso pensar no problema de forma ampla, com iniciativas que, de fato, façam a diferença. Como iniciativa, ele e outros professores da Universidade de Brasília (UnB) discutem o assunto. A primeira ação foi criar um projeto para colher assinaturas e criar, a partir disso, um fundo de orçamento para políticas contra o racismo.
“Precisamos mudar todas as estruturas da sociedade. E isso passa pela capacitação adequada das pessoas para combater, inclusive, o racismo institucional. Ainda hoje, as empresas, os órgãos e as instituições estão impregnados pelo modelo baseado na escravidão”, reclama Carlos. Segundo o especialista, a exposição dos fatos é fundamental para garantir a equidade. “Temos uma civilização que está se deparando com uma população sofisticadamente racista. E não sustenta isso. Como cidadão negro, tenho vergonha de não ter instrumentos para que a população brasileira assuma que tudo isso pode ser diferente”, conclui.
Depoimentos
"O preconceito, o racismo, nada mais é do que muita, mas muita falta de educação. Isso vem de casa. Quem cresce a vida toda escutando que preto é diferente de branco, dificilmente vai agir de outra forma no futuro. Mudar isso fica difícil. Então, eu tento não dar muita bola para as pequenas coisas" Kris Maciel, 36 anos, cantora A cada dia, pelo menos uma pessoa procura uma delegacia do Distrito Federal para denunciar casos de racismo ou de injúria racial. Nos primeiros 50 dias do ano, foram 65 registros. A média é de 1,3 a cada 24 horas. O número apresenta crescimento proporcional quando comparado aos anos anteriores. Em 2013, houve 434 ocorrências, ou 1,2 relato por dia, com a maior quantidade de casos no Plano Piloto. Em 2012, o número total alcançou 303, com destaque para Ceilândia. |
Por causa dos seguidos aumentos, a Polícia Civil do DF criou, no início do ano, a Coordenação de Atendimento aos Grupos Vulneráveis. Por enquanto, o núcleo funciona internamente e participa de reuniões com o Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT), com o Tribunal de Justiça do DF e Territórios (TJDFT) e com a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Sepir). Mas a ideia é que o grupo comece a atender diretamente as vítimas de preconceito.
"Como qualquer negro, sempre deixamos essas coisas acumularem. Mas temos de expor, de mostrar o tamanho do racismo. Só assim vamos conseguir combater" Kim de Souza Fortunato, 23 anos, diretor da Rede Urbana de Ações Socioculturais (Ruas) do DF |
Coordenadora do atendimento, a delegada Sandra Gomes Melo ressalta que a Polícia Civil do DF tem se preparado para trabalhar e atender melhor essas ocorrências. A recomendação é de que as vítimas continuem procurando as delegacias regionais, até que o espaço esteja completamente estruturado. “Temos uma preocupação com esses grupos vulneráveis. É um crime que precisa ser realmente muito exposto. A população precisa estar esclarecida porque ainda é um tabu”, argumenta Sandra.
A delegada afirma que o incremento no número de ocorrências não necessariamente indica aumento na quantidade de delitos. “Isso deve ser visto de forma positiva. É uma mudança de crença e demonstra uma credibilidade no trabalho que vem sendo feito pelos órgãos públicos. E quanto mais trabalharmos os direitos das pessoas e fizermos campanhas esclarecedoras, mais as vítimas confiarão nos serviços públicos e procurarão ajuda”, avalia.
Maioria negra
Dados da Companhia de Planejamento do DF (Codeplan) indicam que a população negra é maioria no DF. No último levantamento, ela representava 54% dos habitantes da capital do país. Mesmo com mais da metade população negra e várias conquistas na luta pela igualdade de direitos (veja Linha do tempo nas páginas 22 e 23), muitos brasilienses ainda passam por vários tipos de constrangimento por causa da cor da pele.
A história da cantora brasiliense Kris Maciel, 36 anos, se confunde facilmente com uma cena fictícia de novela. Depois de se apresentar com a banda dela em São Luís, no Maranhão, Kris embarcou em um avião com destino a Brasília. Antes mesmo dos avisos de decolagem, a cantora foi surpreendida por uma passageira que estava sentada ao seu lado. A mulher disse à comissária que não ficaria ao lado de uma negra. “Fiquei com vergonha, constrangida e quieta, no meu lugar”, contou (veja Depoimentos).
O caso aconteceu em 2008, mas os constrangimentos não ficaram no passado. Há dois meses, Kris foi novamente vítima de preconceito. Depois de uma discussão de trânsito, foi xingada: “Negra safada. Foi disso que ela me xingou. Expôs-me e ainda chamou a polícia dizendo que estava sendo assaltada, que o carro dela estava sendo roubado”. Diferentemente de 5 anos atrás, quando deixou a situação de lado, Kris deu encaminhamento ao caso na delegacia e na Justiça. “Não tenho vergonha de ser negra e não me sinto diferente de ninguém”, afirma.
Para o pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e especialista em discriminação racial Carlos Alberto Santos de Paulo, é preciso pensar no problema de forma ampla, com iniciativas que, de fato, façam a diferença. Como iniciativa, ele e outros professores da Universidade de Brasília (UnB) discutem o assunto. A primeira ação foi criar um projeto para colher assinaturas e criar, a partir disso, um fundo de orçamento para políticas contra o racismo.
“Precisamos mudar todas as estruturas da sociedade. E isso passa pela capacitação adequada das pessoas para combater, inclusive, o racismo institucional. Ainda hoje, as empresas, os órgãos e as instituições estão impregnados pelo modelo baseado na escravidão”, reclama Carlos. Segundo o especialista, a exposição dos fatos é fundamental para garantir a equidade. “Temos uma civilização que está se deparando com uma população sofisticadamente racista. E não sustenta isso. Como cidadão negro, tenho vergonha de não ter instrumentos para que a população brasileira assuma que tudo isso pode ser diferente”, conclui.
Depoimentos
“Fiquei com vergonha”
“Eu estava no check-in do aeroporto de São Luís, tinha me apresentado lá, com a minha banda, quando começou um empurra-empurra na fila. Eu não dei muita atenção e ainda falei: ‘Calma, gente, todo mundo vai embarcar.’ Sentei-me no meu lugar, e uma mulher se sentou ao meu lado. Na mesma hora, ela gritou para a comissária. Queria que eu saísse dali. Com todas as letras, falou que não ia se sentar, não viajaria ao meu lado porque eu era negra. A comissária a trocou de assento e, assim, viajamos. Todos que estavam em volta ficaram chateados, mas, eu, à época, fiquei com vergonha, constrangida e quieta, no meu lugar. Esperei todo mundo descer e, só depois, desci. Não procurei os meus direitos, não denunciei, mas, se eu quisesse, poderia ter processado a mulher e a empresa. Se fosse hoje, com certeza, o meu comportamento seria outro. Na minha casa, a minha avó foi uma mulher excelente e esclarecida. E ela passava isso para nós. O preconceito, o racismo, nada mais é do que muita, mas muita falta de educação. Isso vem de casa. Quem cresce a vida toda escutando que preto é diferente de branco, dificilmente vai agir de outra forma no futuro. Mudar isso fica difícil. Então, eu tento não dar muita bola para as pequenas coisas. Mas, com certeza, vou correr atrás se a situação for gritante. Com essas atitudes, não vamos acabar com o problema, mas podemos ter grandes melhoras.”
Kris Maciel, 36 anos, cantora
“Não me enxergam como um diretor”
“Tudo começou com a organização de um bazar. Fizemos uma parceria com um banco e recebemos muitas doações de roupa para o evento. Vendemos tudo, e eu saí com o dinheiro, dentro de uma mochila, para depositar. Eram cerca de R$ 50 mil. Cheguei ao banco, dentro do horário de funcionamento, certinho e, na hora em que entrei e disse que queria depositar a quantia, a funcionária, que era branca, começou a me fazer um monte de questionamentos. Quanto tinha e onde eu tinha arrumado aquela quantidade de dinheiro. No início, cheguei a achar que era de praxe, mas percebi claramente o preconceito dela por causa da minha cor. Eu estava acompanhado de um amigo, e ela apontou para ele e disse: ‘Deixa eu falar com seu chefe’. Ela falou isso porque ele era branco. Mas ele não era o meu chefe, pelo contrário. Ele nem sequer sabia quanto dinheiro tinha na mochila. Foi quando eu insisti e disse que depositaria o dinheiro. Passei por muitas situações a minha vida inteira, mas essa foi a gota d’água. Sou negro, de família humilde e moro fora do Plano Piloto. Nunca me enxergam como um diretor. Só como office boy. Dei entrada com uma denúncia no Ministério Público e ganhei a ação. Tanto o banco quanto a mulher tiveram de me indenizar. Como qualquer negro, sempre deixamos essas coisas acumularem. Mas temos de expor, de mostrar o tamanho do racismo. Só assim vamos conseguir combater.”
Kim de Souza Fortunato, 23 anos, diretor da Rede Urbana de Ações Socioculturais (Ruas) do DF
Kris Maciel, 36 anos, cantora
“Não me enxergam como um diretor”
“Tudo começou com a organização de um bazar. Fizemos uma parceria com um banco e recebemos muitas doações de roupa para o evento. Vendemos tudo, e eu saí com o dinheiro, dentro de uma mochila, para depositar. Eram cerca de R$ 50 mil. Cheguei ao banco, dentro do horário de funcionamento, certinho e, na hora em que entrei e disse que queria depositar a quantia, a funcionária, que era branca, começou a me fazer um monte de questionamentos. Quanto tinha e onde eu tinha arrumado aquela quantidade de dinheiro. No início, cheguei a achar que era de praxe, mas percebi claramente o preconceito dela por causa da minha cor. Eu estava acompanhado de um amigo, e ela apontou para ele e disse: ‘Deixa eu falar com seu chefe’. Ela falou isso porque ele era branco. Mas ele não era o meu chefe, pelo contrário. Ele nem sequer sabia quanto dinheiro tinha na mochila. Foi quando eu insisti e disse que depositaria o dinheiro. Passei por muitas situações a minha vida inteira, mas essa foi a gota d’água. Sou negro, de família humilde e moro fora do Plano Piloto. Nunca me enxergam como um diretor. Só como office boy. Dei entrada com uma denúncia no Ministério Público e ganhei a ação. Tanto o banco quanto a mulher tiveram de me indenizar. Como qualquer negro, sempre deixamos essas coisas acumularem. Mas temos de expor, de mostrar o tamanho do racismo. Só assim vamos conseguir combater.”
Kim de Souza Fortunato, 23 anos, diretor da Rede Urbana de Ações Socioculturais (Ruas) do DF
POR » KELLY ALMEIDA » CAMILA COSTA - CORREIO BRAZILIENSE - 11/09/2014