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Arma não é brinquedo. Nem a vida


O que significa o brincar no desenvolvimento de uma criança? A questão deve ser lembrada de forma especial na data de hoje, quando muitas cidades comemoram, Brasil afora, o Dia Mundial do Desarmamento Infantil. O DF tem razões de sobra para se orgulhar da data: com a Lei nº 5.180, sancionada em setembro de 2013, tornou-se a primeira unidade da Federação a proibir a fabricação e o comércio de armas de brinquedo em seu território. 

Mal foi aprovada, no entanto, a lei despertou a imediata reação da poderosa indústria de brinquedo, que cerrou fileiras em direção ao Poder Judiciário, com ações destinadas a impedir que a proibição entre em vigor. Tudo para não correr o risco de perder um centavo qualquer no faturamento total, que só no Brasil gira em torno de US$ 4,83 bilhões por ano. Já as crianças, o que perdem? E o que ganham? 

Armas foram criadas com um único objetivo: matar. O talento humano tem sido usado para desenvolver tecnologias capazes de torná-las cada vez mais eficientes, e os brinquedos seguem a mesma lógica. Mas, podemos aceitar que as crianças continuem sendo incentivadas a brincar de matar enquanto o país busca meios de vencer a maior epidemia de violência de sua história, que vem reduzindo gradativamente o sentido da vida a uma perigosa insignificância?

Esse tipo de brincadeira já perdeu a inocência há décadas. O Mapa da Violência 2013 – Morte Matada por Armas de Fogo tem a explicação: em apenas 30 anos, o número de vítimas de arma de fogo cresceu 346,5%, saltando de 8.710, em 1980, para 38.892, em 2010. Entre as vítimas na faixa dos 15 aos 29 anos, o aumento foi de 414%, enquanto, no mesmo período, a população brasileira cresceu 60,3%. 

O Brasil entrou, por essa via, no rol dos países que mais matam, com cerca de 55 mil homicídios ao ano, 70% deles por arma de fogo. A média de 26 assassinatos por 100 mil habitantes é quase o triplo do parâmetro de 10 estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para não configurar uma epidemia de violência. O DF é o 9°, no ranking nacional da violência. Aqui, como em todo o país, armas de brinquedo são usadas em roubos, estupros, sequestros. E as de verdade surgem em conflitos banais no trânsito, no lar, com vizinhos, nos bares, escolas, entre jovens. Até escopeta já é usada, como no crime que chocou a Asa Norte há poucos dias. 

Brincadeiras com arma, assim, em nada contribuem para o crescimento de uma criança. Elas apenas reproduzem, de forma perversa, característica insidiosa da cultura de violência que mergulhou o país nessa epidemia: a do uso da força ou de um instrumento letal como recurso para a solução de um conflito. Investir na mudança dessa cultura é a grande tarefa que se impõe, hoje, à sociedade, e o cuidado com o brincar desponta como atitude crucial nesse processo. 

Mestre em comunicação e coordenadora do Núcleo de Cultura e Pesquisas do Brincar da PUC de São Paulo, a educadora Maria Ângela Barbato Carneiro reconhece, no trabalho “Cócegas, cambalhotas e esconderijos: construindo cultura e criando vínculos”, que a criança faz parte de um grupo social, “é um ser histórico e, como sujeito de sua própria experiência é capaz de produzir cultura”. 

Ângela chama a atenção para a necessidade de se cuidar das condições físicas e materiais do brincar, que devem ser capazes de estimular a criança, enriquecer as suas experiências, “desafiá-las, levá-las a refletir e a criar”. E bota o dedo na ferida que tem levado a indústria do brinquedo aos tribunais para barrar uma lei criada para produzir cultura de paz. 

“Considerar a criança como um ser passivo”, diz ela, “faz parte de um pensamento neoliberal, preocupado que está muito mais com o consumo e com a competitividade, fazendo com que a criança seja objeto de uma indústria cultural, comportando-se passivamente diante dela”.

Crianças são agentes de transformação, como já se revelou em campanhas como a da paz no trânsito. Esse potencial foi comprovado em outro projeto pioneiro da capital federal, o “Arma não é brinquedo. Dê livros”, que levou meninos e meninas de Ceilândia a trocar 567 arminhas de brinquedo por livros e gibis, em apenas um mês. O resultado mostrou que tanto as crianças como as suas famílias querem e estão prontas para promover essa mudança de cultura e assumir a sua parte na construção da paz. 


A data de hoje é para que se lembre, também, que as crianças merecem respeito no seu direito ao brincar e ao crescer com dignidade. A Justiça de Brasília está atenta e já negou duas liminares à pretensão da indústria do brinquedo de sobrepor o seu interesse financeiro. Acatando decisão da juíza da 3ª. Vara da Fazenda Pública, Caroline Santos Lima, o desembargador Sandoval Oliveira, do TJDFT, foi taxativo: “ .... o foco da lei, evitar brincadeiras de crianças com armas de brinquedo ou que lembrem tal instrumento, é proteger direitos fundamentais que, até, então, pareciam irrelevantes” . Se o exemplo prevalecer e todos se unirem nessa tarefa, a data não deverá passar em branco, no próximo ano.


Por: Valéria de Velasco - Jornalista. Fonte: Correio Braziliense 

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