Nos anos 1970, era tamanha a alienação dos
brasilienses em relação à cidade que o irreverente professor da UnB João
Evangelista cogitou criar uma associação de não moradores de Brasília.
Felizmente, esses tempos de alheamento brutal parecem ter ficado para trás,
principalmente com as redes sociais.
Brasília tem vários prédios de relevância
arquitetônica, cultural e simbólica que foram relegados à condição de ruínas e
de monumentos do desamor pela cultura pelos últimos governos. É o caso do
Teatro Nacional de Brasília, do Espaço Cultural da 508 Sul, do Museu de Arte de
Brasília e da Escola de Música. Como se não bastasse esse descaso histórico,
fomos surpreendidos, no último fim de semana, com um novo capítulo desse teatro
do absurdo: a notícia de que o prédio do Touring Club de Brasília, projeto de Oscar
Niemeyer, está sendo desfigurado por uma reforma feita por uma igreja.
No entanto, há um aspecto positivo em toda essa
confusão: uma intensa e veloz mobilização dos brasilienses nas redes sociais
obrigou a Agefis, o Ministério Público e o Iphan a embargar a obra. É bom saber
que a internet não é apenas a morada dos narcisistas, dos ignorantes e dos
tolos; ela pode ser acionada também para causas relevantes.
Ainda existem alguns mistérios a serem desvendados.
Quem é o dono do prédio e quem concedeu autorização para reforma tão esdrúxula?
Mesmo na condição de propriedade particular, aquele edifício é tombado, não
pode ser reconstruído ao sabor dos caprichos de cada um e para qualquer
finalidade.
Todo esse atropelo pode ser um momento para tomada
de consciência e para uma mudança de atitude no sentido de revalorização dos
espaços culturais de Brasília. A arquiteta Maria Elisa Costa, filha de Lucio
Costa, reivindica que o prédio do Touring seja desapropriado e transformado em
espaço cultural. Nada mais justo. O edifício, com vista privilegiada para a
Esplanada dos Ministérios, já serviu de oficina mecânica, posto de gasolina e
ponto de comércio para ambulantes. Brasília está na contramão da maioria das
capitais brasileiras, que têm revitalizado, como núcleos culturais, presídios
desativados, antigas estações ferroviárias ou armazéns portuários em desuso.
Está na hora de mudar.
Brasília foi criada por artistas ou por gente com
alma de artista, que reservaram generosos espaços para a cultura. Mas, com o regime
de exceção de 1964 e, mesmo com a redemocratização, a cidade ficou nas mãos de
mandatários desamantes da arte e sofreu um processo de degradação que a reduziu
a cenário para um faroeste caboclo.
O tombamento de Brasília como patrimônio cultural
da humanidade pela
Unesco impôs um freio e colocou um parâmetro
internacional alto para avaliar a cidade. Se não fosse o tombamento, Brasília
já teria sucumbido à ganância, à ignorância, ao provincianismo, ao oportunismo
e à cafonice. Mesmo assim, a cidade permanece alvo de desmandos.
Mas esse rápido movimento contra a
descaracterização do prédio do Touring Club é um sinal alentador. Mostra que os
brasilienses não aceitam mais, passivamente, as agressões contra a cidade. Como
diz Noel Rosa no Samba do positivismo: “O amor vem por princípio/A ordem por
base/O progresso é que deve vir por fim”.
Por: Severino Francisco – Correio Braziliense – Foto/Ilustração: Google