Salão nobre Palácio da Alvorada
Por Severino Francisco,
Que ao menos nos seja dado o direito ao espanto.
Brasília está sendo alvo de um ato de desfiguração de sua identidade. Quarenta
e oito obras e peças de arte de acervos dos palácios da Alvorada e do Planalto
serão devolvidas, a partir desta semana, para o Museu Nacional de Belas Artes
do Rio de Janeiro. Foram criteriosamente escolhidas por Anna Maria Niemeyer e
Athos Bulcão. Elas estavam emprestadas desde 1956 a pedido do então presidente
Juscelino Kubitschek.
Com isso, Brasília perderá obras de Portinari,
Djanira, Guignard, Arcângelo Ianelli, Eliseu Visconti, Maria Leontina, Rodolfo
Amoedo e Henri Nicolas Vinet. Para tanto, foi apresentado o argumento
burocrático da necessidade de que “passassem por uma limpeza profunda e sejam expostas
de maneira adequada”.
No entanto, tudo indica que a decisão não teve o
respaldo de especialistas, pois revela uma profunda ignorância sobre a
integração entre arte e arquitetura em Brasília, capital modernista tombada
como patrimônio cultural da humanidade.
Oscar Niemeyer não gostava da palavra “decoração”
aplicada à presença da arte em seus projetos. De fato, ele sempre buscou uma
integração orgânica e indivisível entre arte e arquitetura, de modo que seja
impossível separar uma da outra, sem interferir em seus prédios esculturais.
Esse é um dos aspectos importantes dos projetos de
Oscar Niemeyer e que pesou na decisão da Unesco ao conferir a Brasília o título
de cidade moderna a ser reconhecida como Patrimônio Cultural e Artístico da
Humanidade. Niemeyer sempre convidou toda uma constelação de artistas de
primeira linha do modernismo para realizar intervenções em seus prédios.
Entretanto, no caso específico do Palácio da
Alvorada, além das esculturas de Cheschiatti e Maria Martins ou das
intervenções de Athos Bulcão na capela, a ambientação dos amplos espaços é de
grande importância para caracterizar o prédio como residência numa linha, a um
só tempo, de simplicidade e de nobreza.
Os móveis, as cortinas, os quadros, as peças de
artesanato popular e as tapeçarias podem parecer detalhes irrelevantes se
considerarmos a complexidade do desenho e das operações de engenharia
envolvendo a arquitetura moderna. Mas não são; eles harmonizam, humanizam e
personalizam os ambientes.
Com o objetivo de realizar esta ambientação do Palácio
da Alvorada, o arquiteto convocou a sua filha Anna Maria de Niemeyer Soares.
Não se tratava de conceder uma chance de trabalho por razões familiares.
Niemeyer era muito exigente e obsessivo, mas confiava no conhecimento e no bom
gosto da filha. Anna cuidou pessoalmente de cada detalhe e indicou
absolutamente tudo. Obras de arte, móveis, talheres, louça, tolhas de mesa
enormes e roupas de cama.
Estão prometendo substituir as peças devolvidas ao
Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro por outras do acervo da Presidência e do
Banco Central. É outro atestado de desconhecimento, de descompromisso e de
desamor por Brasília. Não se trata de um amontado aleatório de objetos. Na
verdade, essas obras deveriam ter sido tombadas e incorporadas definitivamente
aos acervos do Alvorada e do Planalto há muito tempo. É preciso reverter a
decisão insensata do confisco das obras, pois ela rompe com o equilíbrio, a
harmonia e a nobreza dos prédios majestosamente simples de Niemeyer.
(*) Severino Francisco, jornalista, repórter,
colunista do Correio Braziliense – Foto/Ilustração: Blog - Google