Vindos do Rio de Janeiro, especialistas de várias áreas ergueram
acampamento em Santa Luzia
Então denominada Santa Luzia, a cidade de Luziânia serviu de base ao
grupo de pesquisadores que fez a primeira demarcação do território onde seria
construída Brasília
Brasília não nasceu de um sonho ou do mero desejo de Juscelino
Kubitschek. A Constituição Federal de 1891, a primeira do país, determinou a
demarcação do território onde seria construída a futura capital. Para tirá-la
do papel, 60 anos antes de JK iniciar a construção da cidade, um grupo de
cientistas brasileiros e europeus desbravou o Planalto Central para registrar
tudo o que havia na região e traçar o quadrilátero em que seria erguida uma
metrópole planejada. Nessa missão, realizada na última década do século 19,
vindos do Rio de Janeiro, eles montaram acampamentos na hoje região do Entorno
do Distrito Federal. À época, havia só quatro cidades: Pirenópolis, Corumbá,
Formosa e Luziânia. Então chamada Santa Luzia, esta última, que completou 270
anos ontem, voltaria a ter papel fundamental na concretização da maior obra da
era JK.
Pesquisadores,
geólogos, geógrafos, botânicos, naturalistas, engenheiros e médicos, entre
outros, integravam a equipe da missão chefiada pelo astrônomo e geógrafo
belga Louis Ferdinand Cruls incumbida de explorar o Planalto Central. De 1892 a
1894, eles fizeram estudos científicos até então inéditos no Centro-Oeste,
mapeando aspectos climáticos e topográficos, além de estudar a fauna, a flora,
os cursos de rios e modo de vida dos habitantes. Realizado sobre lombo de
burro, contando apenas com o vasto conhecimento dos expedicionários e
equipamentos rústicos, o trabalho resultou em um precioso documento. Chamado de
Relatório Cruls, ele contém mapas, descrições da fauna, da flora e das riquezas
minerais da região, além de fotografias.
A turma
responsável pelos arredores de Santa Luzia destacou as riquezas naturais dos
lugares por onde passaram. Em especial, a grande quantidade água—atualmente
cada vez mais escassa, com a ocupação desordenada do solo. “Encontramos grande
número de cursos d’água em qualquer dos trajectos, sendo os maiores o São
Bartholomeu e o São Marcos, entre Palmital e Santa Luzia, e em seguida o Rio
Descoberto, formado pela confluencia, proximo do Chico Costa, dos rios Maria do
O´, das Pedras e Tajobá”, descreveu, em grafia da época, Henrique Morize, chefe
da turma responsável por demarcar e explorar o vértice Sudeste do quadrilátero.
Barracas da Missão Cruls em 1892: destaque para a riqueza dos recursos
naturais da região
O Rio Descoberto é o mesmo que atualmente abastece
70% dos imóveis do DF e enfrenta uma grave crise. Seu reservatório entrou na
casa dos 20% há um mês e não mais saiu dela, levando as autoridades da capital
a anunciarem a possibilidade de racionamento. Já Chico Costa é o nome do dono
de uma das fazendas usadas pela Missão Cruls como referência, em Santa Luzia.
Os pesquisadores também demonstraram surpresa com a qualidade das terras e a
saúde das pessoas da região. “A zona entre Santa Luzia e Chico Costa pareceu-me
fértil: é de aspecto agradável e abundantemente irrigada. Apesar de estarmos na
estação chuvosa, não encontramos nos moradores nenhum caso de febre”, ressaltou
Morize, em seu relatório.
Malária
Mas nem sempre foi assim. No fim do século 18, Santa Luzia sofreu uma epidemia de malária que provocou uma fuga em massa. Boa parte dos moradores dos lugarejos migrou para o então Arraial dos Couros (veja Memória), que viria se tornar o município de Formosa. Naquele período, o povoado era ponto de passagem de tropeiros e comerciantes. Eles acampavam em barracas de couro para vender seus produtos. Daí veio o nome de Arraial dos Couros, mas não há consenso entre pesquisadores sobre essa origem. Alguns apontam que os moradores vendiam peles de animais selvagens.
Pouco antes da passagem da Missão Cruls, a escravidão movia a economia de boa parte do Brasil. Na segunda metade do século 19, Goiás vivia o ciclo de ouro. Ainda chamada Santa Luzia, mas já uma cidade, Luziânia era sede do julgado — o juiz municipal —, ao qual estavam vinculados dois arraiais: o dos Couros e o do Angico, na atual região de Brazlândia. O Arraial dos Couros era constituído por 148 habitantes, 50 imóveis e a Igreja de Nossa Senhora da Conceição, Mercês e Abadia. Havia ainda 39 fazendas de gado e seis engenhos.
Grande parte do produzido no Arraial dos Couros era vendido a moradores de Santa Luzia, conforme descrito por Henrique Morize: “Quasi todo o commercio é feito com a cidade de Santa Luzia, onde elles vão à busca do sal e por onde vêm do Sul os boiadeiros fazer aqcquisição de gado. Parte d’ahli para Santa Luzia uma bôa estrada de rodagem com o conveniente desenvolvimento, pela qual sobem a serra os carros de bois, que são o principal meio de transporte do sal.” Com a construção de Brasília, Formosa e Luziânia passaram a ser ligadas por uma estrada asfaltada, atualmente duplicada, em boas condições. Mas uma já não depende da outra economicamente.
Líder de expedições
Antes da missão ao futuro Distrito Federal, o astrônomo e geógrafo belga dirigiu o Observatório Astronômico do Rio de Janeiro. Ele liderou outras expedições científicas importantes dos séculos 19 e 20, como a observação da passagem de Vênus pelo disco solar em 1882 e a conferência internacional que definiu o meridiano de Greenwich como referência para todas as nações. Nascido em Diest em 1848, Cruls morreu em Paris, em 21 de junho de 1908.
Sucessor de Cruls
O astrônomo e fotógrafo Morize nasceu em 31 de dezembro de 1860, em Beaune, na França, e mudou-se para o Rio aos 5 anos. Naturalizou-se brasileiro em 1884. O trabalho dele no país não se resume ao registro da Missão Cruls. Por problemas de saúde, só completou o curso de engenharia industrial em 1890. Um ano depois, tornou-se astrônomo do Observatório Nacional, no Rio de Janeiro. Em 1908, assumiu a direção do órgão, sucedendo o amigo belga Louis Cruls. Morreu em 19 de março de 1930, no Brasil.
Para saber mais - Mudança pensada desde o século 18
No século 18, o governo português já cogitava a possibilidade de transferir a capital do Brasil para o interior — medida defendida em outros momentos históricos. Ainda no Império, o patriarca da Independência, José Bonifácio, defendia a transferência da capital para a mineira Paracatu. Na República, o artigo 3º da Constituição Federal de 1891 determinou a demarcação do território para construção da futura capital do Brasil. Em 1892, o então presidente Floriano Peixoto instituiu a Comissão Exploradora do Planalto Central, por meio da Portaria 114-A. De 1892 a 1894, pesquisadores fizeram estudos científicos até então inéditos no Centro-Oeste, mapeando aspectos climáticos e topográficos, além de estudar a fauna, a flora, os cursos de rios e o modo de vida dos habitantes. O chefe do grupo, Louis Cruls, voltou à região no segundo semestre de 1894 para concluir alguns estudos e definir a região exata de Brasília dentro dos 14,4 mil km2 demarcados pela comissão.
Memória - Índios e bandeirantes
Há quase 300 anos, os bandeirantes passaram pela primeira vez por onde hoje é Formosa, a 70 km do Plano Piloto. Depararam-se com uma comunidade indígena do povo Crixá. O encontro entre portugueses e nativos está descrito na expedição de Anhanguera, em 1722. No documento, porém, há relatos da presença de estrume de vaca naquelas terras, o que indicaria a passagem do homem branco, trazendo gado. A comprovação oficial dos primeiros não índios no local, por meio de papéis guardados em Portugal, data de 1739. Eles estabeleceram fazendas de criação de gado, atividade que ainda move a região. Somente em 1843, Formosa foi elevada à categoria de vila e passou a se chamar Vila Formosa da Imperatriz. Em 1877, virou município.
Malária
Mas nem sempre foi assim. No fim do século 18, Santa Luzia sofreu uma epidemia de malária que provocou uma fuga em massa. Boa parte dos moradores dos lugarejos migrou para o então Arraial dos Couros (veja Memória), que viria se tornar o município de Formosa. Naquele período, o povoado era ponto de passagem de tropeiros e comerciantes. Eles acampavam em barracas de couro para vender seus produtos. Daí veio o nome de Arraial dos Couros, mas não há consenso entre pesquisadores sobre essa origem. Alguns apontam que os moradores vendiam peles de animais selvagens.
Pouco antes da passagem da Missão Cruls, a escravidão movia a economia de boa parte do Brasil. Na segunda metade do século 19, Goiás vivia o ciclo de ouro. Ainda chamada Santa Luzia, mas já uma cidade, Luziânia era sede do julgado — o juiz municipal —, ao qual estavam vinculados dois arraiais: o dos Couros e o do Angico, na atual região de Brazlândia. O Arraial dos Couros era constituído por 148 habitantes, 50 imóveis e a Igreja de Nossa Senhora da Conceição, Mercês e Abadia. Havia ainda 39 fazendas de gado e seis engenhos.
Grande parte do produzido no Arraial dos Couros era vendido a moradores de Santa Luzia, conforme descrito por Henrique Morize: “Quasi todo o commercio é feito com a cidade de Santa Luzia, onde elles vão à busca do sal e por onde vêm do Sul os boiadeiros fazer aqcquisição de gado. Parte d’ahli para Santa Luzia uma bôa estrada de rodagem com o conveniente desenvolvimento, pela qual sobem a serra os carros de bois, que são o principal meio de transporte do sal.” Com a construção de Brasília, Formosa e Luziânia passaram a ser ligadas por uma estrada asfaltada, atualmente duplicada, em boas condições. Mas uma já não depende da outra economicamente.
Líder de expedições
Antes da missão ao futuro Distrito Federal, o astrônomo e geógrafo belga dirigiu o Observatório Astronômico do Rio de Janeiro. Ele liderou outras expedições científicas importantes dos séculos 19 e 20, como a observação da passagem de Vênus pelo disco solar em 1882 e a conferência internacional que definiu o meridiano de Greenwich como referência para todas as nações. Nascido em Diest em 1848, Cruls morreu em Paris, em 21 de junho de 1908.
Sucessor de Cruls
O astrônomo e fotógrafo Morize nasceu em 31 de dezembro de 1860, em Beaune, na França, e mudou-se para o Rio aos 5 anos. Naturalizou-se brasileiro em 1884. O trabalho dele no país não se resume ao registro da Missão Cruls. Por problemas de saúde, só completou o curso de engenharia industrial em 1890. Um ano depois, tornou-se astrônomo do Observatório Nacional, no Rio de Janeiro. Em 1908, assumiu a direção do órgão, sucedendo o amigo belga Louis Cruls. Morreu em 19 de março de 1930, no Brasil.
Para saber mais - Mudança pensada desde o século 18
No século 18, o governo português já cogitava a possibilidade de transferir a capital do Brasil para o interior — medida defendida em outros momentos históricos. Ainda no Império, o patriarca da Independência, José Bonifácio, defendia a transferência da capital para a mineira Paracatu. Na República, o artigo 3º da Constituição Federal de 1891 determinou a demarcação do território para construção da futura capital do Brasil. Em 1892, o então presidente Floriano Peixoto instituiu a Comissão Exploradora do Planalto Central, por meio da Portaria 114-A. De 1892 a 1894, pesquisadores fizeram estudos científicos até então inéditos no Centro-Oeste, mapeando aspectos climáticos e topográficos, além de estudar a fauna, a flora, os cursos de rios e o modo de vida dos habitantes. O chefe do grupo, Louis Cruls, voltou à região no segundo semestre de 1894 para concluir alguns estudos e definir a região exata de Brasília dentro dos 14,4 mil km2 demarcados pela comissão.
Memória - Índios e bandeirantes
Há quase 300 anos, os bandeirantes passaram pela primeira vez por onde hoje é Formosa, a 70 km do Plano Piloto. Depararam-se com uma comunidade indígena do povo Crixá. O encontro entre portugueses e nativos está descrito na expedição de Anhanguera, em 1722. No documento, porém, há relatos da presença de estrume de vaca naquelas terras, o que indicaria a passagem do homem branco, trazendo gado. A comprovação oficial dos primeiros não índios no local, por meio de papéis guardados em Portugal, data de 1739. Eles estabeleceram fazendas de criação de gado, atividade que ainda move a região. Somente em 1843, Formosa foi elevada à categoria de vila e passou a se chamar Vila Formosa da Imperatriz. Em 1877, virou município.
Por Renato Alves – Fotos: Charles
Morize/Missão Cruls – Correio Braziliense