*Por Thiago de Andrade,
Uma nova
agenda urbana, construída sobre os pilares de mobilidade e sustentabilidade,
começa a ganhar forma na capital do país, com ações para ampliar o transporte
de massa e rever marcos regulatórios, como o Código de Obras, a Lei de Uso e
Ocupação do Solo e o Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília.
Tornar-se menos dependente do automóvel individual é um dos grandes desafios
mundiais no planejamento urbano das metrópoles neste século 21.
Em Brasília, particularmente, essa estruturação
ganhou um impulso com a sanção da Lei do Polo Gerador de Viagens no ano
passado. A lei resgata a capacidade do Estado de planejar e controlar as
intervenções urbanas relacionadas à mobilidade, outrora levianamente delegadas
aos empreendedores daqueles edifícios enquadrados como polos geradores de
tráfego. O Estado recolhe do empreendedor uma contrapartida de mobilidade
urbana para financiar estudos e obras viárias com olhar abrangente e sistêmico,
assegurando o controle social por meio de um comitê multissetorial com
participação da sociedade civil.
A nova sistemática substituiu o Relatório de
Impacto de Trânsito, famoso pela sigla RIT, e conservou exigência de prévia
anuência de órgão de trânsito competente, conforme preconiza o Código de
Trânsito Brasileiro. Durante a vigência do RIT, o ente privado era quem
contratava os estudos de tráfego no mercado, fazia as quantificações e medições
necessárias e propunha ele mesmo as alterações necessárias no sistema viário ao
redor do empreendimento.
Ora, por mais que considerassem um razoável
raio de abrangência das ruas ao redor da edificação, os estudos do RIT eram
pontuais e individuais e as medidas mitigadoras, invariavelmente, privilegiavam
o próprio empreendimento, em detrimento de uma obrigatória visão sistêmica
sobre a mobilidade regional. Pior, os estudos individualmente analisados não se
constituíram em um acervo útil para planejamento, pois carregavam metodologias
distintas e estavam dispersos no tempo e no território.
A necessária analogia para compreensão do
tráfego é a de um sistema de circulação como o sanguíneo. No corpo, um coágulo
iniciado em determinada região se desloca e causa trombose em uma parte do
corpo distante da origem. As principais artérias geram danos maiores e mais
nefastos, uma vez que, por hierarquia, abastecem maior número de órgãos.
Igualmente, um acidente ou um fechamento de vias, por vezes, acarreta efeitos a
quilômetros de distância.
Assim é o tráfego. De nada adianta criar alargamentos
inconsequentes sempre privilegiando o automóvel, justamente o que a antiquada
legislação fazia: viabilizava o melhor e mais fluido deslocamento pontual do
automóvel, especialmente o individual, sem olhar para a mobilidade de forma
complexa e multimodal. Fazia como o meme de internet: “Tratar o problema do
tráfego alargando vias é como tratar a obesidade acrescentando furos ao cinto”.
Não há registro de política pública de
mobilidade bem-sucedida em que não tenha havido o necessário confronto com o
carro. No mundo, as medidas são muitas e diversas: sobretaxação do automóvel
individual e do combustível, redução de seu espaço nas ruas, extinção de vagas
gratuitas, cobrança de pedágio diário em centros urbanos, obrigatoriedade de
abrigo privado na residência para poder comprar um carro, entre outras.
Em Brasília, estamos atrasados. Nossos
normativos exigem conforto e uma tutela excessiva do automóvel, gerando
garagens cada vez mais obsoletas, catedrais vazias para o automóvel, mas
principalmente espaços públicos que perdem qualidade de forma acelerada ao
viabilizar o carro em detrimento do pedestre, do ciclista e do transporte
público. Estudo do IPEA demonstrou que o Estado brasileiro investia, na década
passada, doze vezes mais em transporte individual do que em transporte público,
contados subsídios e investimentos.
Não se pode começar a enfrentar o uso excessivo
do automóvel somente no dia em que o transporte público for de excelência. Os
carros são, muitas vezes, o mais confortável e conveniente meio de transporte,
mas são sempre os mais ineficientes. Estudos do International Transport Forum,
entidade da OCDE, indicam que o automóvel tem cerca de 97% de ineficiência,
pois transporta em média 1,2 pessoa por carro e fica parado mais de 92% do
tempo. Parado ou em circulação os automóveis presentes hoje no DF ocupam no
mínimo 40 milhões de m², o equivalente a 800 mil moradias populares de 50m².
Como diria o urbanista, ex-prefeito e governador Jaime Lerner, “o carro é o
cigarro do século XXI”.
(*) Por Thiago de Andrade - Secretário de Gestão do Território e
Habitação do Governo do Distrito Federal – Foto/Ilustração Blog
Google – Correio Braziliense