Salvo pela Legião Urbana
*Por
Severino Francisco
Caetano
Veloso assinou prefácio de edição recente da ficção A máquina de fazer
espanhóis (Ed. Biblioteca Azul), do escritor português Valter Hugo Mãe. Ao
fim do texto, Caetano manifesta alegria pela menção do autor a uma referência
brasileira e, mais do que isso, brasiliense: “Bastar-me-ia registrar quão
comovente é para mim – e suponho que o será para muitos brasileiros – saber que
a audição de canções da Legião Urbana contribuiu para a formação da
sensibilidade de quem realizou com tanta delicadeza trabalho tão potente”.
A mira de
Caetano foi certeira. De fato, há sintonia entre a escrita de Valter Hugo Mae e
a poesia de Renato Russo. Em A máquina de fazer espanhóis, o tema da
velhice em um asilo é o pretexto para o escritor português exercitar,
paradoxalmente, uma compaixão vigorosa, dramática, trágica e epifânica: “A
brancura é um estágio para a desintegração final”, é o título do capítulo 2.
A ficção
tece o fio da vida do barbeiro António Jorge da Silva, que passa a viver em um
lar para idosos, depois da morte da mulher. Ele faz parte da grande família
silva, silvestre, selvagem: “continuou, somos todos silvas neste país, quase
todos. crescemos como mato, é o que é”. O personagem enuncia coisas terríveis
com uma delicadeza de pétalas e um senso de humor que afirma a vida: “talvez
tivesse sido por ter dito fugazmente o nome da minha laura, usando-a para me
congratular por alguma heroica qualidade amorosa. E o amor é para heróis. O
amor é para heróis”.
Em 2011,
durante a realização da Flip, o escritor lusitano fez uma bela declaração de
amor ao Brasil. Contou que o melhor amigo da adolescência era um brasileiro
chamado Alexandre, que estudava em sua escola e trazia discos de bandas
brasileiras: “Eu instintivamente corri atrás dele. Queria ser amigo dele como
se fosse vital para mim. Ele mostrou-me Titãs e Legião Urbana. Eu achava que o
Renato Russo ia salvar a minha vida com aquela canção do Tempo perdido.
Quando o Renato Russo morreu, chorei muito e passei só a chorar quando ouço
o Tempo perdido. Eu não sei se a arte nos deve salvar, mas tenho a certeza
de que pode conduzir ao melhor que há em nós, para que não nos desperdicemos na
vida”.
Walter
Hugo enfatiza que “o melhor Brasil é esse Brasil cultural, deslumbrante,
criativo, lição de inteligência e infinita beleza”.
No entanto,
pouco tempo depois, Valter Hugo Mãe ficou bravo ao saber que alguns brasileiros
lançavam maledicências contra a Legião Urbana nas redes sociais: “Fiquei puto
porque percebi que no Brasil havia um certo afastamento da Legião, como se
aquilo fosse uma cabeça caipira, uma cabeça antiga, algo brega”, indignou-se
Walter em entrevista ao site UOL. “Como é possível ‘abregalhar’ a Legião, que
era uma coisa tão forte, libertária? Legião é uma exclamação redonda,
importante. Como podem vê-la como uma coisa cafona? Eu não gostei, fiquei
zangado, porque pensava que era um patrimônio imaterial do país. Acho que o
povo brasileiro precisa perceber a importância musical e até literária da
Legião.”
Calma,
Valter Hugo, perdoai-lhes, eles não sabem o que falam. Não leve tão a sério a
leviandade das redes sociais em tempos pós-humanos. Como ocorreu com todos os
grandes em todos os tempos, a Legião resistirá à fatuidade ululante. O amor é
para heróis.
Foi muito
bom saber que a banda brasiliense saiu do chão árido do planalto, atravessou o
Oceano Atlântico e despertou o que havia de melhor na alma do mais vigoroso
escritor português da atualidade.Você nos fez feliz com a sua declaração de
amor e de inteligência à Legião Urbana. E, quem quiser, que forme outra banda
melhor e conte outra.
(*)
Severino Francisco - Jornalista, colunista do Correio Braziliense - Foto: Credito:
legiaourbana.com.br/Divulgacao.