Ser ou não ser? Fake é a questão
*Por Circe Cunha
Quinhentos e dezessete anos atrás, ensaiamos nos tornar uma nação
decente, respeitada pelo resto do planeta. Afinal fomos o primeiro laboratório
do mundo a misturar simultaneamente gente de três continentes, num amálgama sui
generis de raças, potencializando o que cada cultura tinha de mais expressivo e
forte. Em se tratando de projeto de nação, tudo parecia caminhar para um
sucesso de civilização, modelo para o mundo. No meio do caminho, contudo,
alguma coisa deu muito errado e enveredamos por caminhos tortos.
O que houve nesses cinco séculos pode ser resumido numa simples
sentença: nossa elite política nunca foi sintonizada com a população em geral.
Como resultado dessa separação litigiosa, o povo foi deixado de lado, servindo
apenas como mão de obra barata e fonte de produção de riquezas, expropriadas
pelos poderosos. Com a saída dos portugueses, ingleses e outros controladores,
o poder sobre a terra foi passado para a elite nacional, mas nada mudou.
Custamos a perceber que, com esses timoneiros, nunca chegaremos a bom porto,
mas ainda assim permanecemos indiferentes ao nosso destino.
Para usar um termo atual, nos tornamos fake desde a origem. Desde o
princípio não houve um projeto de país. Sempre fomos apenas uma terra de
passagem, capaz de fornecer lucro da exploração. Fingimos o tempo todo, dizendo
acreditar na nossa classe política e em seus partidos. Até votarmos neles. Mas
é tudo mentira. Não acreditamos neles e em nenhum outro que assuma o poder. No
fundo, agimos assim justamente porque não acreditamos em ninguém, muito menos
naqueles que prometem mundos melhores.
Somos fake muito antes do grande irmão do norte. Não nos libertamos de
nada e não abolimos nada também. Instalamos uma monarquia e um governo nacional
fake, com personagens de além-mar, apenas para fazer figuração perante o mundo.
Erguemos uma república que sabemos oligarca e excludente. Mentimos para que nos
deixassem em paz. Esqueçam-se de nós. Somos fake e portanto não existimos.
Encontramos na arte da figuração um jeito fake de ser. Nossa malemolência é
fake. O samba é fake. O futebol é fake. Tudo em nós é fake. Até o carnaval é
fake. Desfilamos nossos trapos coloridos num arranjo fake para que acreditem
que somos um povo alegre e festeiro. Tudo encenação e absolutamente fake.
Aturamos seguidos governos porque, ao fim e ao cabo reconhecemos neles
um mundo fake. Votamos em eleições fakes, porque queremos prolongar nosso mundo
de ilusão. Construímos um mundo todo à nossa volta para que pareça real e
vibrante, embora sabendo ser uma ilusão passageira. Somos desavergonhadamente
fakes e não damos bolas para isso.
***
A frase que foi pronunciada
“Os homens deviam ser o que parecem ou, pelo menos, não parecerem o que
não são.”
(William Shakespeare)
***
Pronunciamento
» Na semana passada, o senador Reguffe fez um pronunciamento no plenário
anunciando voto contrário com duras críticas ao projeto que permite às empresas
de planos de saúde aumentarem o preço para quem tem mais de 65 anos. “Esse
projeto só beneficia as empresas de plano de saúde, é um desrespeito ao
consumidor e ao idoso.”
Só para lembrar
» Reguffe foi eleito por 57.61% dos votos válidos no DF. Ele abriu mão
da verba indenizatória, só tem 10 pessoas trabalhando no gabinete e é o único
senador que abriu mão do direito ao plano de saúde vitalício e da aposentadoria
especial. É o senador mais coerente que o país já teve. Discurso político e
prática parlamentar em absoluta sintonia.
(*) Circe Cunha – Coluna “Visto, lido e ouvido” – Ari Cunha – Correio
Braziliense – Fotos/Ilustração: Blog - Google



