Os amigos de Athos
*Por Severino Francisco
Um dos aspectos mais misteriosos de Athos Bulcão é
o capítulo das amizades. Ele era um homem extremamente tímido, retraído, um
habitante do silêncio. Falava sussurrando como se sempre estivesse contando um
segredo. Mas, apesar de ser um integrante da raça dos tímidos, sempre
conquistou amigos com o silêncio encantador.
E que amigos! Uma verdadeira constelação
modernista: Oscar Niemeyer, Burle Marx, Portinari, Di Cavalcanti, Vinicius de
Moraes, Lucio Costa, Lelé Filgueiras, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga,
Fernando Sabino, Paulo Francis, Carlos Scliar, Pancetti, entre outros. Sempre
foi salvo pelos amigos.
Certa vez, Athos mandou uns quadros para um júri de
pré-seleção de uma mostra coletiva a ser realizada na Argentina e seu trabalho
foi recusado. Portinari esbravejou, ficou indignado, considerou aquela
avaliação absurda e, num dos rompantes, a certa altura, perguntou: “Você quer
trabalhar em Belo Horizonte, na equipe que vai fazer o mural de São Francisco
na Pampulha?”
Athos não teve dúvidas e colaborou em 1945 com
Portinari no primeiro projeto que distinguiria Niemeyer como um dos grandes
inovadores da arquitetura moderna. Foi a porta que abriu caminho para trabalhar
em Brasília. O próprio Athos se considerava da raça dos tão tímidos, que
ficavam esperando em casa que alguma coisa boa caísse em sua cabeça como um raio.
Por sorte, graças à amizade com Niemeyer, não um
raio, mas uma cidade inteira, Brasília, caiu-lhe aos pés para que imprimisse o
toque de leveza, elegância, delicadeza e requinte. Athos era o antimarqueteiro,
o antilobista e o antiarticulador. Se não fosse a intervenção salvadora dos
amigos, ele permaneceria no anonimato, apesar de todo o extraordinário talento.
Rubem Braga escreveu que seria triste a sina dos
meninos que nascessem em Brasília: nunca veriam andorinhas. Errou feio, pois o
amigo Athos Bulcão imprimiu, nas paredes da Igrejinha da 109 Sul, a imagem do
espírito santo com o voo parado das andorinhas.
Em coletânea publicada recentemente, é possível ler
uma crônica inteira de Braga dedicada ao amigo Athos Bulcão, perpassada de
sacanagens carinhosas: “Athos Bulcão, lento e delicado, de olheiras (fez
regime, emagreceu 18kg), tem certa fama de fantasma, costuma aparecer nos
lugares mais estranhos, nas mais inesperadas horas, e dizem que já baixou, ao
mesmo tempo, em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Roma, segundo testemunhos
autorizados. Paulo Mendes Campos afirmou que ele se evapora de madrugada em
menos de um minuto, ficando apenas dois olhos boiando no ar, que logo somem.
Vinicius de Moraes, perguntado uma vez se acreditava no espiritismo, disse “yo
no creo en Athos Bulcones, pero que los hay, los hay”.
(*) Severino Francisco – Jornalista, colunista do Correio Braziliense – Foto/Ilustração: Blog Google
(*) Severino Francisco – Jornalista, colunista do Correio Braziliense – Foto/Ilustração: Blog Google
A grandeza de Athos Bulcão
Muito além dos azulejos, exposição com obras do
artista ajuda brasilienses a redescobrirem o legado de um dos principais
mestres das artes no Brasil
*Por Luiz Calcagno
Athos Bulcão é um artista a ser conhecido. A
extensão da obra de um dos mais importantes nomes da história da arte
brasiliense ultrapassa, em muito, os tradicionais azulejos que, merecidamente,
marcaram a carreira do gênio. Piauiense radicada em Brasília, a enfermeira
aposentada Heloísa Braga Albano, 57 anos, fala com propriedade sobre Athos, mas
também com espanto, ao se deparar com um acervo amplo e, muitas vezes,
desconhecido dos brasilienses, que inclui quadros, colagens, ilustrações de
contos, peças de roupa, croquis de moda, capas de revista e álbuns de vinil. O
material está à disposição de curiosos na mostra 100 anos de Athos Bulcão, no
CCBB.
Heloísa aproveitou a manhã do aniversário de 57
anos para visitar a exposição com colegas do curso de verão de artes da
Universidade de Brasília. “Eu conhecia bem a fase concreta de Athos, em que ele
trabalha com o material industrial, os azulejos, principalmente. É uma produção
que dialoga comigo intensamente. Traz movimento e descoberta. Mas me surpreendi
muito com as outras obras dele. Estou acostumada a visitar exposições e museus,
mas nunca tinha visto algo assim. Ele constrói imagens e personagens
fantásticos, e dialoga com vários outros artistas. Nós, brasilienses, temos que
conhecer mais essas grandes figuras”, surpreende-se.
A enfermeira aposentada Heloísa Albano se surpreendeu com o amplo acervo
de Athos Bulcãon no Centro Cultural Banco do Brasil
O relacionamento de Heloísa com Athos Bulcão data
da vinda dela para a capital. “Mudei-me para Brasília em 1983, após ser
aprovada em um concurso público da Câmara dos Deputados. Primeiro, eu me
deparei com um museu a céu aberto. Depois, quando transitamos pelo Congresso e
outros órgãos, como o Itamaraty, também encontramos acervos riquíssimos com
obras de Athos e outros grandes artistas brasileiros. Acho que ele (Athos
Bulcão) era um dos artistas mais próximos do que estava acontecendo em Brasília
na época da construção. Tanto que dava os azulejos para que os operários
montassem os painéis como imaginassem, trazendo uma abstração coletiva”, conta.
Diante das obras de Athos, o professor de cursinho,
Rafael dos Santos, 24, ressignificou o próprio olhar sobre Brasília. “Chegamos
a nos esquecer de que Athos Bulcão tem obras espalhadas por todo o Plano
Piloto. Ao passear pela exposição, não vemos apenas o que está exposto, mas
mudamos nosso olhar sobre as obras da cidade. Outro ponto importante é que
Athos Bulcão é conhecido pelos azulejos, mas é um artista com várias dimensões.
Ao nos depararmos com produções tão diferentes, vemos que há uma construção
temporal que se soma a cada criação. Ele ofereceu uma personalidade para
Brasília”, afirma Rafael
Albertino Brandão levou a filha, Tatiele, à mostra: "Nosso olhar
sobre ele se transforma e, consequentemente, nossa visão da cidade",
afirma a jovem
O advogado Albertino Brandão, 62, se acanha ao
falar de Athos Bulcão. Ele levou a filha, Tatiele, 25, para visitar a
exposição. Nascida em Brasília, a jovem mora em Montes Claros (MG). “A obra de
Athos Bulcão provoca uma desconstrução e ativa nossa sensibilidade”, explica o
pai. “Acho que ele deveria ser mais visto, mais divulgado, mais valorizado. Não
somente na exposição, mas nas obras que estão espalhadas pela cidade”, opina.
“A arte dele transforma Brasília. As formas e cores completam a cidade que, de
outra forma, seria o cinza do concreto. Com a exposição, nosso olhar sobre ele
se transforma e, consequentemente, nossa visão da cidade”, completa a filha.
A paulista Eliane Klein, 65, foi à exposição com o
marido, Estevão Klein, 69. “Vimos os azulejos em várias partes de Brasília. É
incrível lidar com obras de arte sem estar em um museu, de forma cotidiana. E,
com a exposição, você passa a conhecer mais completamente o artista que
produziu essas obras. A nossa percepção da cidade se transforma com esse novo
conhecimento”, comenta.
Inseparáveis
O impacto causado pela obra de Athos Bulcão em
Brasília é consequência da integração da criação com a arquitetura da cidade.
Não se trata de um enfeite, mas de uma parte inseparável da construção. Quem
afirma é o professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (Fau) da
Universidade de Brasília (UnB) Cláudio José Pinheiro Villar de Queiroz. “As
obras de Athos Bulcão não são postiças na arquitetura, para uma pretensa
decoração, com a intenção de tornar mais bonito. São integradas à obra.
Participam da funcionalidade arquitetônica, inclusive na escolha das formas
geométricas e das cores, que mudam se estão do lado de dentro ou do lado de
fora”, destaca o estudioso.
Ainda segundo o professor, o uso dos azulejos faz
parte de uma linha histórica muito mais ampla. Uma das influências de Athos foi
Portinari, com quem trabalhou na Igreja da Pampulha, em Belo Horizonte (MG), na
execução do mural de São Francisco de Assis (leia Para saber mais). O uso
artístico no país é uma influência da colonização portuguesa — portugueses e
espanhóis haviam herdado a arte dos mouros, que dominaram a Península Ibérica
entre 711 e 1492.
O especialista lembra, também, a importância de
todo o acervo do artista. “Ele produziu vários tipos de obras, resultados de
momentos e emoções diferentes. As montagens fotográficas, por exemplo, são de
um surrealismo incomum. Fotografias que ele não quis divulgar em escala e
proporção que fossem vistas por muitas pessoas, mas, quando você analisa, vê
uma série de simbolismos passíveis de várias formas de interpretação”, avalia o
especialista.
Para saber mais - Artista genial
Athos Bulcão nasceu em 2 de julho de 1918, no
bairro do Catete, Rio de Janeiro (RJ), antiga capital do Brasil. Passados 21
anos, tomaria uma decisão pessoal que, posteriormente, impactaria completamente
a história da arte na nova capital federal, que sequer tinha sido desenhada.
Deixaria o curso de medicina para se dedicar à pintura. A decisão aconteceu no
mesmo ano em que Athos se tornou assistente de Cândido Portinari, outro grande
nome do modernismo brasileiro. Trabalhou com Portinari na Igreja da Pampulha,
em Belo Horizonte (MG), na execução do mural de São Francisco de Assis.
Conviveu e ficou amigo de outros artistas, entre eles Roberto Burle Marx, e, em
1955, começou a parceria com Oscar Niemeyer. Dois anos depois, por indicação do
arquiteto, seria requisitado pela Companhia Urbanizadora da Nova Capital. Cem
anos se passaram desde o longínquo ano do nascimento do artista plástico, que
se radicou brasiliense e se tornou autor de importantes painéis da cidade, em
palácios e nas ruas. O gênio morreu em 31 de junho de 2008, devido a
complicações causadas pelo Parkinson.
(*) Luiz Calcagno – Fotos: Marcelo
Ferreira/CB/D.A.Press – Correio Braziliense