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A capital nascida e um sonho

A capital nascida e um sonho

*Por Circe Cunha

A Capital do país tem condições peculiares. Não nasceu no cruzamento de rodovias, rios, ou extensão de cidade antiga. Foi concebida em sonho. Surgiu nas pranchetas. Material usado se circunscreve à ideia do seu idealizador, Lucio Costa, tendo ao lado Oscar Niemeyer, ambos com suas equipes.

 Oscar gostava de ouvir conversas. Trouxe um grupo de amigos para não sofrer a solidão do horizonte a perder de vista. As casas da Fundação Popular, localizadas na pista conhecida hoje como W3, eram residências para muitos dos arquitetos e engenheiros em companhia de amigos. O motorista era um paraense que usava o termo familiar e chamava o arquiteto de "Oxcar". Conversavam muito também.

No primeiro bloco da Esplanada dos Ministérios, ao lado de onde seria construída a Catedral, no terceiro andar estava o escritório dos arquitetos. Todo engenheiro e arquiteto usava réguas e fazia cálculos unindo dados sem o aparato eletrônico que existe hoje. Ninguém trabalhava ou passeava pelo cerrado sem a companhia da régua de cálculos e apetrechos profissionais. A vestimenta era calça rancheira, blusa cáqui e poeira ou lama nos sapatos. Os autores de projetos passavam o dia trabalhando.

Divertimento era pouco. Engenheiros e arquitetos saíam à noite para o Brasília Palace Hotel. Os mais divertidos procuravam boates. Pista de danças era rebaixada, havia espelhos, e o escurinho instituía a ideia de jovens, quase sempre com prostitutas ou amores diversos. De uma feita, dois engenheiros se engalfinharam na pista de dança. Foi um fuzuê das torcidas que gritavam para os briguentos. Na verdade, disputavam o coração de uma jovem que havia recebido residência no fim do Lago Norte, onde ninguém morava. A pista para a casa dela atravessava o cerrado e era bem cuidada.

Brasília viveu a festa de 1957. Vieram aviões de muitas partes. Havia um toldo largamente instalado, seguro por postes de madeira. Mal terminou a missa, o povo se retirava. Veio um vento e pôs tudo no chão, sem ferir ninguém. Tempos depois foi erguida uma cruz no mesmo lugar, na parte mais alta do Planalto, a caminho da estação que servia aos ônibus e trens. A cidade do Cruzeiro era chamado antes de Gavião. É que, como não havia distinção para a local onde moravam os primeiros funcionários públicos de categoria mais baixa, passou a ser o Setor Residencial Sul. De todas as direções vieram pessoas de vários estados. Todos de avião, já que as rodovias estavam sendo construídas. Essa festa foi em 3 de maio de 1957 e ficou na história como a primeira de Brasília.

Na inauguração, em 21 de abril, havia automóveis vindos de outras partes. Cidade quase pronta, quando foi celebrada a primeira missa. Transmissão de rádio contava com a palavra do papa. Era a bênção à nova capital e aos presentes. Nessa hora, o presidente Juscelino Kubitschek, ao lado de dona Sarah, levou as mãos aos olhos. Estava chorando.

A missa contou com a presença de autoridades de várias partes do mundo e do país, engenheiros, arquitetos e muitos convidados. Foi celebrada com toda a pompa. Apartamentos estavam prontos. Os hóspedes do Brasília Palace Hotel, durante as festas, foram transferidos para apartamentos.

Dr. João Calmon, como estava sem iluminação, desceu a pé as escadas. Embaixo, deixou o toco de vela para localizar seu apartamento. O Brasília Palace Hotel era dedicado aos visitantes ilustres e a autoridades convidadas.

 Visitantes com destaque usavam fraque e cartola. Há foto de Raymond Frajmund mostrando convidados, com o traje de gala, fotografados de costas dentro do cerrado. Pouca gente do povo conseguiu lugar. Assisti à inauguração ao lado de Paulo Cabral. Estávamos na Rodoviária. Passou caminhão da Construtora Rabelo e pedimos carona. Não era permitido, mas nós éramos amigos do dono da construtora. Assistimos à missa e à queima de fogos na subida de quem sai do Palácio Planalto e perto dos primeiros prédios da Esplanada dos Ministérios. Assistimos à parte solene dos festejos na carroçaria de um caminhão. De lá podíamos ver toda a beleza da festa inaugural.

Edifício do Congresso, com 28 andares, não estava completo. Engenheiro da construção usou a inteligência para dar visão de pronto. Dessa forma, as paredes internas foram pintadas de cal. Nas janelas, luzes fluorescentes davam a ideia de que tudo estava pronto. Na Praça dos Três Poderes, o Supremo Tribunal Federal e o Palácio do Planalto, prontos e frequentados, formavam o conjunto cívico. Com a posição do edifício do Congresso, quem assistia à missa tinha a ideia de que a Praça dos Três Poderes estava completa. O Itamaraty ainda não existia. Tempos depois, o terreno foi cercado por muro de tábuas pintadas de branco, e uma betoneira amarela indicava que ali seria o Ministério das Relações Exteriores.

A partir desse dia, mudava a capital do Brasil, saindo do Rio de Janeiro. O estado de Goiás havia desapropriado a área da capital federal. A indenização foi pouca. O fato motivou invasões e apropriações de terras com escrituras falsas. Ainda hoje há invasões nunca declaradas pelos cartórios. Esse foi o nascimento da capital da República, que viveu tempos em que todos se doavam para construir. Cidade que enfrentou de tudo sempre tendo quem a defendesse. Nova capital pensada para abrigar muitas gerações.

(*) Circe Cunha – Coluna “Visto, lido e ouvido” – Ari Cunha – Correio Braziliense – Fotos/Ilustração: Blog - Google



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