O projeto, que prevê 13 conjuntos com 2.384 unidades habitacionais e
teleférico, chama a atenção pelo tamanho e pela forma: previsão de ser erguido
entre a Estrutural e a faixa de 300m ao redor do Parque Nacional
*Por Pedro Grigori
Projeto do governo prevê a construção de conjunto habitacional com 13km
de extensão para receber os 11 mil moradores de uma área irregular na
Estrutural. Complexidade da iniciativa gera críticas de especialistas
Chácara Santa Luzia, a 15km do centro de Brasília: vielas de terra
batida, falta de saneamento básico e ausência de equipamentos público
Maria do Amparo e os filhos: "É muito sofrido viver na lama e na
poeira"
Celma dos Santos pagou a um grileiro R$ 1 mil por um lote na região
A 15km da Praça dos Três Poderes, fica a região
considerada pelo governo como a mais precária do Distrito Federal. Uma invasão
entre o maior lixão a céu aberto da América Latina e o Parque Nacional de
Brasília abriga cerca de 11 mil pessoas. Elas vivem onde o Estado não chega.
Por estar em uma área de proteção ambiental, não há água, luz ou saneamento
básico. Ônibus não entram na região, onde faltam escolas, postos de saúde e
batalhão da polícia. Há quase 18 anos, a Chácara Santa Luzia cresce
desordenadamente, com 95% dos habitantes em áreas irregulares. A resposta para
o problema veio na última semana, quando foi dado o primeiro passo para a
construção da Orla Santa Luzia, um projeto estipulado em R$ 90 milhões que
pretende solucionar os problemas urbanos da Estrutural.
Criado pela Companhia de Desenvolvimento
Habitacional do DF (Codhab), o programa consiste na construção de 13,2km de
casas lajeadas (veja mapa). São 13 conjuntos, com 2.384 unidades habitacionais,
que serão montadas a partir do tamanho da família. A média é de 45 metros
quadrados por apartamento, independentes do condomínio e com escadas por fora.
Haverá também sete módulos de equipamentos públicos, onde estarão serviços como
postos de saúde e escolas. Porém, o projeto recebe críticas de especialistas ao
ser chamado de “muro humano”, separando a Estrutural do Parque Nacional.
Entre as ruas estreitas e não pavimentadas de Santa
Luzia há uma população que teme pelo futuro. Não há uma história oficial sobre
como a invasão começou, mas a versão mais contada é a de que o chacareiro dono
da região repartiu o lote e o revendeu. O boom de moradores ocorreu em 2014,
segundo a Codhab. As casas, até então apenas de madeira, hoje dão lugar a
construções de alvenaria, alguns pequenos comércios. Há dois templos, um
católico e um evangélico. A maioria da população local é formada,
principalmente, por gente que veio de outras unidades da Federação para
trabalhar como catadora no lixão do Jockey Clube, fechado em janeiro deste ano.
De 10 famílias ouvidas pelo Correio, apenas duas
tinham pelo menos uma pessoa com emprego fixo. Uma delas é a maranhense Celma
dos Santos, 37 anos, que há sete anos tenta erguer um lar no lote de 50 metros
quadrados, comprado por R$ 1 mil de um grileiro. A renda familiar é de R$ 400,
mas pode zerar no próximo mês, quando acaba o aviso-prévio que a mulher cumpre
como faxineira em um restaurante.
Celma empurrava um carrinho de mão com tijolos
quando parou para conversar com a reportagem. Ela e o marido estão construindo
uma casa, pois têm medo que um incêndio destrua o barraco de madeira, como
ocorreu na semana passada em um lote duas ruas abaixo da dela (leia Memória).
“Quero ficar no meu cantinho. Aqui todo mundo se ajuda, é injusto expulsarem a
gente”, afirma. Mesmo assim, ela sabe das limitações. “Nós não temos nada. Nem
água ou luz, tudo aqui é gato. A falta de segurança também é um problema,
porque têm aqueles que querem conseguir as coisas sem trabalhar, tirando o
pouco que o outro tem.”
Não há dados oficiais sobre a Chácara Santa Luzia.
O balanço de criminalidade se refere à Estrutural, que inclui a região
irregular. Em abril, a média é de um homicídio para cada 2.053 habitantes,
número quase três vezes maior do que o total do DF. “A Santa Luzia é o local
onde mais prendemos e apreendemos armas e veículos. Percebemos também que,
dificilmente, as prisões são de alguém que não tenha passagem pela polícia”,
conta o major Fabiano de Oliveira, comandante do 15º Batalhão de Polícia
Militar (Estrutural).
Trajetória
Em 2016, a geógrafa Jéssica Mendes apresentou um
estudo sobre a Chácara Santa Luzia na Universidade de Brasília (UnB). Foram
quase dois anos de visitas ao local para traçar as falhas e as carências. “Eles
vivem à margem de qualquer tipo de urbanismo. Na época de chuva, o medo é a
casa alagar. Na seca, pegar fogo. Eles chegam a sofrer preconceito até dos
moradores da Estrutural regularizada, são malvistos por todos”, explica. Mesmo
assim, desde a pesquisa, Jéssica percebe o receio da população local de perder
o pouco que tem. “Teve um projeto de realocação na Estrutural. Eles chamam de
‘casinhas’, mas foram embargadas, e as pessoas não podiam morar lá, pela
proximidade com o Lixão. Houve invasões feitas por pessoas que não tinham
direito à moradia e, no fim, teve quem ficou sem casa”, relembra.
A primeira obra iniciada é de um prédio que
abrigará escola, unidade de saúde, companhia da PM e escritórios de órgãos
públicos. A previsão de entrega é agosto. A verba para essa etapa vem dos
cofres da Codhab, que considera o projeto como mais importante da companhia no
momento. A previsão é de que a primeira unidade habitacional seja entregue até
dezembro. Famílias com renda mensal de até R$ 1,8 mil não terão de pagar pela
moradia.
A Codhab está em estudos para viabilizar a verba
para todo o empreendimento da orla, que tem aval do governador Rodrigo
Rollemberg. Polêmicas sobre o que fazer com Santa Luzia perduram por mais de 10
anos. Em 2016, uma decisão judicial exigiu a realocação da população, e o projeto
de casas lajeadas foi definido como mais adequado para resolver o problema.
“Após tantas discussões, o mais importante era ter uma resposta. Obviamente,
todos queriam um lote, mas, se déssemos, o meio ambiente ficaria completamente
ocupado”, conta o presidente da Codhab, Gilson Paranhos.
O
destaque do projeto, segundo Gilson, é considerar a vida e a trajetória dos
moradores de Santa Luzia. “Vamos respeitar as vizinhanças, que serão mantidas
nos prédios. Pensamos em canis para que os animais sejam levados e tentamos
adequar tudo para que a população se adapte à nova vida”, adianta. As obras
serão feitas por conjunto. A orla utilizará energia solar. Além disso, está
previsto um teleférico para uso gratuito da população. As antigas edificações
serão derrubadas para que a Área de Relevante Interesse Ecológico (Arie) da
Vila Estrutural e a faixa de 300m ao redor do Parque Nacional de Brasília sejam
respeitados.
"Vamos respeitar as vizinhanças, que serão
mantidas nos prédios. Pensamos em canis para que os animais sejam levados
e tentamos adequar tudo para que a população se adapte à nova vida”
-(Gilson Paranhos,presidente da Codhab)
Alerta e divergência
Aos 39 anos e com três filhos, Maria do Amparo
Santos está feliz com a possibilidade de deixar a irregularidade. Desempregada,
ela não tem como mudar da casa de madeira onde vive, na Chácara Santa Luzia. “É
muito sofrido viver na lama e na poeira. Fico me perguntando se eu vou morrer
aqui, nessa situação. Eu não quero isso para os meus filhos não, então, espero
que isso dê certo”, alerta. Raimundo Sousa, 61, fica incrédulo ao ver as
imagens do projeto. “Isso nunca vai acontecer, é impossível”, afirma. “Esse
dinheiro seria melhor usado colocando asfalto nas ruas, trazendo água e luz
para nós. Não vamos nunca pisar nesses apartamentos, é fora da nossa
realidade”, completa.
O projeto recebeu críticas pelo fato de o complexo
habitacional separar a Estrutural da área verde do Parque Nacional. Para Milena
de Lannoy, mestra em arquitetura sustentável e professora de arquitetura e
urbanismo da Universidade Católica de Brasília (UCB), a iniciativa não
considera a educação ambiental. “A forma concebida trata o ser humano como um
objeto, deixando de lado a urbanidade. Em vez de ensinar a importância da
preservação ambiental, ele é separado do verde, e o Parque Nacional é um local
aberto ao público”, avalia.
Sobre a situação da Chácara Santa Luzia, Milena
afirma que é complicado resolver sem a desapropriação. “As vias estreitas não
têm condições de atender a infraestrutura urbana, de passar uma rede pluvial,
por exemplo. Seria preciso derrubar casas para isso”, explica.
Memória - Fogo e vingança
Memória - Fogo e vingança
Na madrugada de 13 de maio, um incêndio destruiu
três barracos que dividiam um lote em Santa Luzia. Morador de uma das casas,
Okleone Brito foi o primeiro a tentar apagar as chamas. Desesperado para
extinguir as labaredas, ele inalou fumaça e passou mal. O Corpo de Bombeiros enviou
seis equipes ao local, mas, por causa das ruas estreitas, os veículos tiveram
dificuldades para alcançar o foco do incêndio. De acordo com as
investigações da 8ª Delegacia de Polícia (Setor de Indústria e Abastecimento),
a ex-companheira de Okleone teria ateado fogo à casa para vingar a separação
dos dois. Ela foi presa.
(*) Pedro Grigori – Fotos: Antonio
Cunha/CB/D.A.Press – Codhab – Correio Braziliense