Há 30 anos, fãs da Legião Urbana provocaram um
badernaço no Mané Garrincha, uma história que marcou a cidade - (A banda no
início do show: plateia começou a jogar bombinhas no palco)
*Por Irlam Rocha Lima
Em 1988, o Brasil era governado por José Sarney, a
economia havia entrado em colapso, pós-Plano Cruzado, as exportações caíram
drasticamente e as reservas cambiais foram esgotadas. Na televisão, o programa
de maior sucesso era a novela Vale tudo, de Gilberto Braga. As rádios FMs,
tocavam à exaustão Que pais é este?, o hit do momento e nome também do terceiro
LP da Legião Urbana, a banda que saiu de Brasília para se tornar o grande nome
do rock nacional.
O sucesso estrondoso da Legião, após três discos
lançados, fez de Renato Russo, Dado Villa-Lobos, Renato Rocha e Marcelo Bonfá
os novos ídolos dos brasilienses. Músicas como Será, Geração Coca-Cola, Ainda é
cedo, Tempo perdido, Índios e Eduardo e Mônica faziam parte do set list básico
dos jovens daquela geração. E a elas se juntaram Faroeste caboclo e Angra dos
Reis, as músicas de maior destaque do novo álbum, ao lado da faixa título.
Desde que foi anunciado o show de retorno da banda
à capital, um ano e meio depois de lotar por duas noites a Sala Villa-Lobos e o
Ginásio Nilson Nelson — numa série de três apresentações — para um megaconcerto
no Estádio Mané Garrincha, era enorme a expectativa em todos os cantos do
Distrito Federal. Não foi surpresa para ninguém a presença de um público de 50
mil pessoas na friorenta noite de 18 de junho de 1988 para assistir àquele
show, que se tornaria histórico por diferentes razões.
A primeira delas tem a ver com o fato de, até
então, nenhum artista ter reunido na cidade, num espaço fechado, 50 mil
pessoas. A outra foi o badernaço provocado pela recusa de Renato e banda de
voltarem ao palco, após quase serem atingidos por objetos e bombinhas de
são-joão, arremessadas da plateia.
Documentários
Em consequência disso, os equipamentos de som foram
quebrados pelos fãs mais exaltados. Cenas de violência explícita ficaram
registradas, igualmente, fora do estádio, culminando com o confronto entre
parte dos espectadores e policiais militares. Ônibus foram destruídos e dezenas
de pessoas feridas. Cenas do tumultuado concerto ganharam registro,
posteriormente, em dois documentários: Rock Brasília — Era de Ouro, de Vladimir
Carvalho; e Dê-me abrigo, de Ana Carolina Bussacos, Jania Bárbara de Souza e
Beatriz Leal.
Dado Villa-Lobos, que desde 2015 faz turnê ao lado
Marcelo Bonfá, para celebrar os 30 anos do LP de estreia da Legião, ao falar
sobre o show do Mané Garrincha, a pedido do Correio, foi lacônico: “Minhas
lembranças estão registradas no livro Memórias de um legionário. Eu me lembro
bem do palco pelos mais de 60 minutos que lá ficamos. Bombas explodindo,
alambrado despedaçado, invasão e mais bombas explodindo do meu lado; e depois
de uma noite em claro, hostilizado no aeroporto, no caminho de volta pra casa”.
Um dos produtores do show, Rodrigo Amaral, que
estreava nessa função naquela oportunidade, afirma enfático: “Apesar dos
problemas ocorridos e dos aborrecimentos vividos, vivenciamos um evento que
entrou para a história de Brasília e do rock brasileiro”. Ele recorda que houve
críticas em relação à altura do palco, mas justifica: “Veio da própria produção
da Legião, representada pelo Rafael Borges, o pedido para que fosse mais baixo,
a fim de deixar a banda mais próxima do público”.
Rodrigo faz questão de deixar claro que era da
banda o segurança do palco. “Foi ele quem permitiu o acesso do fã, de cadeira
de rodas, que agarraria o pescoço do Renato”. O produtor acrescenta que naquele
tempo não se usava barricada como proteção de palco. O alambrado instalado acabou
cedendo, diante da pressão das pessoas que estavam na parte frontal do palco.
Tomei como lição, para não repetir as falhas cometidas naquele show”.
Saída do palco para evitar o pior
Orgulho
Presente ao show, Romero Pedrosa, economista e
servidor da Telebras, que à época tinha 21 anos, até hoje é fã da Legião Urbana
e, em especial, de Renato Russo. A primeira apresentação da banda que assistiu
foi em 1983, no Clube do Servidor, com abertura da banda Obina Shok. Depois
marcou presença num dos shows na Sala Villa-Lobos.
“Quando cheguei ao Mané Garrincha, em 18 de junho
de 1988, vivia um sentimento que misturava expectativa e orgulho. Orgulho por
ver uma banda surgida em Brasília, alcançar o mais alto patamar do rock
brasileiro, capaz de reunir 50 mil pessoas num estádio”, destaca. “Assistia ao
show da arquibancada e percebi, logo que o Renato começou a cantar Que país é
este?, o começo de um tumulto no gramado, em frente ao palco”, rememora
Pedrosa.
Segundo ele, o discurso do Renato, após o estouro
de uma bomba, próximo aos pés do cantor, aumentou a confusão. “Mas, o mais
determinante para aumentar a baderna, foi a decisão da banda de não voltar para
o bis. Como testemunha de tudo o que ocorreu naquela noite, me vi, desde então,
como personagem de um dos maiores momentos do rock no Brasil e da história de
Brasília”.
Cenas que marcaram o fatídico
dia
Depoimento - Carmem Teresa Manfredini, irmã
de Renato Russo
“No dia do fatídico show do Mané Garrincha, meu
irmão estava de bom humor, diferentemente de outros shows, em que ficava
nervoso antes de subir ao palco. Ele se hospedou com a banda no Hotel Saint
Paul. Quando cheguei ao estádio, fiquei numa espécie de chiqueirinho, um local
reservado para os amigos e jornalistas.
Achei o palco muito baixo e pequeno e não tinha
ideia da tensão que já dominava o ambiente, com pessoas quebrando vidros de
ônibus, por exemplo.Obviamente, o governo do Distrito Federal e a produção
local subestimaram o número de pessoas que iriam ao show e, além disso, não
houve organização e infraestrutura corretas.
No decorrer do show, a tensão foi se agravando, com
Renato, que era ariano, despejando opiniões que estava tendo naquele momento.
Quando um homem subiu ao palco e o agarrou pelo pescoço, imobilizando-o, eu
fiquei com medo pela segurança física dele.
Sabia que, dali em diante, o show não iria ser bom,
mesmo que eles continuassem até o fim. E foi o que aconteceu. Muito nervosismo,
bombinhas no palco. Conhecendo o meu irmão, percebi que ele acabaria
drasticamente com aquilo.
Quando saíram do palco e não voltaram, deu-se o
caos. Eu me lembro de termos saído por uma passagem subterrânea e ficarmos por
um tempo numa espécie de sala. Os fãs gritavam para que voltassem, mas, mesmo
que a banda quisesse voltar ao palco, o meu irmão não voltaria, orgulhoso que
era.
Fomos para o hotel com uns amigos, mas ele, muito
abalado, decidiu ir para o nosso apartamento na 303 Sul. Queria escapar do
assédio e das possíveis agressões, que viriam realmente a acontecer. Os nossos
pais estavam no Rio de Janeiro.
Duas amigas em comum tinham vindo para show e
estavam hospedadas comigo.
Ele começou a sair do estado de agitação e começou
a ficar deprimido e muito preocupado com o que tinha acontecido, se havia
mortes, etc. Preparamos a banheira com água quente e sal grosso e ele ficou
nesse banho por um bom tempo, e foi dormir no quarto dos nossos pais, enrolado
com um cobertor até a cabeça.
O telefone não parava de tocar: amigos,
jornalistas, mas também vozes de homens, ameaçando jogar bombas no apartamento
e matar o meu irmão. O porteiro estava instruído a não deixar ninguém subir sem
identificação. Alguns amigos vieram.
Quando ele decidiu ir embora, tivemos a ideia de
sair pela entrada da garagem e seguir para o aeroporto, fugindo, literalmente.
Ele foi escoltado pelo Murilão, um amigo, até a área VIP.
Antes de falecer, o meu irmão ensaiou uma volta
para um grande show em Brasília, mas acho que ficou reticente, com medo da
reação do público. Tornou-se algo mitológico alguém ter ido ao show do Mané
Garrincha. Apesar de toda a conjunção de erros, foi um ponto divisor na
carreira da Legião e do meu irmão. Dali em diante, ele percebeu a dimensão do
sucesso da banda no país e teve a responsabilidade, cada vez maior, pelas
letras que escrevia e os efeitos que causavam e, ainda hoje, causam nas
pessoas.”
(*) Irlam Rocha Lima – Fotos: Ivaldo Cavalcante/Divulgação – Ronaldo de
Oliveira/D.A.Press – Correio Braziliense
Eu fui!
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