Da próxima vez que alguém disser que Brasília é uma cidade fria…
Crônicas urbanas, crônicas de afeto e do viver - (Conceição Freitas)
Chovia miudinho na tarde de domingo (17/2). Imensa procissão de errantes
bailava pela S2 sob o olhar empinado da Catedral de Niemeyer. S2, observem, tem
a forma de um coração. É o Bloco do Amor, que desce pela via estreita que passa
aos fundos da fileira sul dos ministérios. É o bloco mais LGBT de Brasília.
O mestre de cerimônia pede permissão aos legítimos ocupantes da S2, os
trabalhadores do sexo que dão vida à via depois que a Esplanada vai
dormir ou diz que vai. E anuncia a Guarda Republicana, pequeno grupo de
saltimbancos fantasiados de amor – muita cor, muita alegoria, muito brilho,
muito atrevimento, muita sensualidade. É a Comissão de Frente do Bloco do Amor.
Mercês Parente, 67 anos, é a Perfeita do Bloco (Perfeita, percebam), a rainha
do amor de carnaval. É uma comissão diversa: jovens, menos jovens, magros,
menos magros, negros, brancos, lésbicas, gays, trans, travestis, héteros…
São tão românticos os saltimbancos LGBTs.
“Eu não vou negar que sou louco por você, tô maluco pra te ver, eu não
vou negar”. É com Zezé de Camargo e Luciano, em ritmo de marchinha de carnaval,
que o trio elétrico começa a arrastar os foliões, jovens aparentemente entre 18
e 30 anos, biologicamente homens e mulheres (já nem sei mesmo como escrever
sobre a diversidade de gênero…
É um bloco de amor e resistência, com discursos identitários e de
respeito ao desejo do outro (“não é não”). Mas também enlouquecidamente sexual.
É uma mistura de desejos do corpo, da alma e das coisas do coletivo. “É
preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”. Brasileiro e
moderno como Caetano e Brasília (“Eu organizo o movimento. Eu oriento o
carnaval. Eu inauguro o monumento no Planalto Central do país”).
É o carnaval da resistência, este de 2019.
No sábado à tarde, o Suvaco da Asa anunciou
com muito orgulho a presença da Orquestra Popular Marafreboi, formada por
músicos profissionais do Sul, Sudeste, Nordeste e de Brasília. A mistura de
frevo, coco, xote, baião, ciranda, maracatu, xaxado, catira, choro,
samba-pisado, tambor de criola, mistura de brasis, saiu da Funarte, desceu o
Eixo Monumental e voltou pelo Centro de Convenções.
Havia, no Suvaco, menos fantasias e muito mais bebida alcoólica (fiquei
pensando que liberar a 30própria fantasia reduz a voracidade pelo álcool e
outras drogas). Grupos carregando garrafas pet de cinco litros de bebidas
coloridas. Em geral, é uma mistura de vodca, água e tang. Também se colocam
refri e halls. Suco gummy é um dos nomes que se dá à alquimia explosiva.
A meninada preferiu ficar entornando o suco gummy e só os que já não se
iludem com tanto álcool ocuparam o asfalto sob o céu sem chuva, bem perto do
ponto mais alto do Plano Piloto. A 1.100 metros acima do nível do mar, a
Marafreboi tocou e cantou Renato Russo em ritmo de frevo. Eu, que não sou da
turma do rock, virei uma foliã chorona.
Estamos a 11 dias do sábado de carnaval e ainda virão Divinas Tetas,
Rejunta meu Bulcão, Essa boquinha eu já beijei, Encosta que cresce, Fio
desencapado, Bloco do Peleja, Unidos da Guariroba, Adocica meu amor, Baratinha,
Baratona, Raparigueiros, Pacotão. Contei mais de 50 blocos,
bloquinhos, festas, encontros, festivais, tudo em nome do carnaval.
Da próxima vez que alguém me disser que Brasília é uma cidade fria,
não respondo por mim.
Conceição Freitas – Fotos: Igo Estrela – Metrópoles