No começo
de Brasília tudo era de madeira, até o pecado
Crônicas
urbanas, crônicas de afeto e do viver -(Conceição Freitas)
Sempre que vai apresentar Brasília a arquitetos brasileiros e
estrangeiros, Sylvia Ficher começa o percurso por um lugar inesperado: o Museu Vivo da Memória Candanga. Por que ela, professora de
arquitetura da UnB, orientadora de mais de duas dezenas de teses de mestrado e
doutorado sobre Brasília, começaria o roteiro na cidade por um conjunto de
barracos de madeira que um dia abrigaram o HJKO? Agá-Jota-Ka-Ó era como os
candangos chamavam o Hospital Juscelino Kubitschek de Oliveira, o Hospital de
Base daquela época.
As casinhas coloridas de madeira são o ponto de partida da cidade de
concreto e mármore. Foi da madeira que surgiu a arquitetura moderna
brasiliense. A primeira obra de Oscar Niemeyer na
nova capital foi um palácio de tábuas, o Catetinho, volume
suspenso em pilotis com um avarandado genuinamente brasileiro. Pouco tempo
depois, a Escola Júlia Kubitschek, nome da mãe de Juscelino, também tinha as
pernas compridas e elegantes dos pilotis.
No
começo, tudo era madeira. Os galpões da Novacap, as casas dos engenheiros, os
acampamentos das empreiteiras, os barracos dos candangos, as igrejas, as
escolas, os bares, os hotéis, tudo era de madeira. Como se o adobe, o tijolo e
o cimento ainda não tivessem sido inventados.
Em
pouquíssimo tempo, um extenso povoado de construções amadeiradas abriu-se num
sertão goiano de casas de adobe dos séculos 18 e 19. As edificações mais
distintas eram pintadas com cores fortes para se diferenciar da palidez da
madeira nua dos barracos. Algumas igrejas, como a de Nossa Senhora do Rosário
de Pompéia, na Vila Planalto, eram envernizadas. A igrejinha da Metropolitana,
que tão poucos conhecem, foi pintada de um azul interiorano que até hoje é
preservado.
As madeiras do começo de Brasília são a travessia do telúrico para o
artificial. Seriam duas as Brasílias se as casas feitas de árvores fossem
mantidas de pé. Arqueologia flutuante se contrapondo à arquitetura pétrea.
Seriam os subúrbios coloridos da cidade-monumento. Seria,
como no samba-enredo da Mangueira, “a história que a história não
conta, o avesso do mesmo lugar”.
No começo de Brasília tudo era de madeira, até o pecado
Havia
ajuntamentos de madeira velha compondo barracos, como na Vila Amaury, que o
lago engoliu, e havia casas com tábuas e ripas, técnica muito usada no interior
do Paraná e que hoje compõem o patrimônio tombado do estado. Por certo,
mestres-carpinteiros vieram do Sul para erguer construções em madeira, mas não
conheço registro da passagem desses candangos temporários.
Se a
utopia tem um lugar de origem em mim, ela é em madeira. Tinha um andar e meio a
casa de perna-de-pau que me criou – só um quarto em cima. E debaixo dela um
porãozinho de menos de um metro de altura era o meu pilotis seminal, meu
esconderijo de menina assustada numa vila de três casas e um armazém de secos e
molhados.
Havia um
aglomerado de casas que me dava tremores. Ficava no fim da rua, onde o Rio
Guamá fazia a curva. Era o prostíbulo, zona de baixo meretrício, cabaré,
bordel, casa da luz vermelha. É provável que no meu tempo e na minha cidade
aquele lugar fosse chamado de puteiro, palavra que escondi no porão. Pelo jeito
que os adultos ficavam quando tratavam daquele território inominado, a palavra
podia sair andando sozinha e me levar a lugares dos quais eu poderia não
voltar. Não conheço cidade mais excitante que a amazônica Belém.
Em Brasília, os puteiros dos candangos ficavam no
final das avenidas paralelas do Núcleo Bandeirante.
(Havia o puteiro do alto escalão, mas essa é outra história).
Escola Júlia Kubitschek
Menina
criada na Cidade Livre, Antônia Samir Ribeiro se lembra de ver as moças
bonitas, de vestido acinturado e bocas vermelhas, passando em direção à Placa
da Mercedes, onde ficava uma das ZBMs da nova capital. (Hoje é um bairro, o
Setor Placa das Mercedes).
A pouca madeira que sobrou na capital do concreto armado resiste heroicamente na
Vila Planalto, no Museu Vivo, na Candanga, no Paranoá, no Catetinho.
Conceição Freitas - Fotos: Edson Beú - Arquivo
Públoco - Metrópoles
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HISTÓRIAS