O Cruzeiro não é mais carioca, mas continua sendo a cidade do samba - Crônicas
urbanas, crônicas de afeto e do viver . (Conceição Freitas)
Avó e neto. Ela, negra, entre 50 e 60
anos; ele, negro, não mais de 6 meses de idade. Já é noite e o garotinho está
aceso. Tenta bater palma, mas ainda não tem o pleno domínio do movimento dos
braços. Não chora, não ri, parece em estado de sonho ou de útero. Rodopia
suavemente no colo da avó. São dois, mas parecem um só navegando em águas de
rio no barracão da Aruc.
Domingo passado (14/04/19) foi dia de feijoada para
Ogum. Fazia tanto tempo que eu não ia à escola campeã das campeãs que nem me
lembrava como chegar à quadra. Perguntei a um homem negro que conversava com
outros homens negros e ele abriu os braços para desenhar no ar o roteiro que eu
deveria fazer para alcançar o meu destino. A amiga ao meu lado comentou: “É tão
difícil ver em Brasília alguém
disposto assim a dar uma informação”. Pouco antes, outra cruzeirense, também
negra, havia me ajudado com o mesmo empenho a chegar à Feira Permanente. Pelo
sotaque e pelo jeito expansivo, concluímos que os dois eram cariocas ou
descendentes próximos.
Nascido inteiramente carioca, o Cruzeiro não é mais a extensão do Rio no Cerrado,
mas continua sendo. Apenas 11% dos moradores do antigo Gavião são fluminenses
de nascimento. A pesquisa da Codeplan (PDAD 2016) não investigou quantos dos 35
mil brasilienses/cruzeirenses são filhos ou netos de pioneiros; por certo a
influência carioca é bem maior do que revela a matemática.
Há uma atmosfera negra, brasileira e do samba que envolve a cidade-satélite que nasceu antes
de Brasília, com projeto feito no escritório de Lucio Costa.
Bares, restaurantes e quiosques dão nome à saudade: o Quiosque de Bobeira tem
um desenho de mar; o Kiosque Jeito Carioca tem uma pintura de samba e Pão de
Açúcar; o Restaurante Gandaia é o “recanto dos sambistas”.
Caótica como qualquer outra, a Feira do Cruzeiro se
distingue das demais pelo fundo musical. Moradora da Octogonal, servidora
pública aposentada, dona Dayse, 66 anos, desce a pé para a cidade vizinha. Vem
no rastro dos lugares que parecem mais verdadeiros do que aqueles com assepsia
dos shoppings. Põe a caixinha de música sobre a mesa e dela ecoam João Gilberto
(“vai, minha tristeza…”), Mercedes Sosa (“como el musguito en la piedra…”)
e caipira de raiz (“ó, chalana, sem querer, tu aumenta a minha dor…”).
Dona Dayse não vem buscar o samba, mas vem buscar
quase a mesma coisa: o sentido de comunidade, de pertencimento, que se revela
no nome dos quiosques, nos encontros de samba, na feira, nas quadras de
esporte. Uma comunidade negra, historicamente filiada à
Portela, que habita não apenas o mesmo espaço geográfico, habita o mesmo
lugar mítico da cuíca, do pandeiro e do tamborim, do Almir Guineto e do
Candeia, de tia Ciata e de dona Ivone Lara, de Clementina e de Jovelina.
Dona Dayse busca na Aruc o sentido de comunidade, de pertencimento, que
se revela no nome dos quiosques, nos encontros de samba, na feira, nas quadras
de esporte
Escrevo
esses nomes como quem escreve Brasil, esse país que está sendo esfacelado na
dimensão da política e dos direitos, das riquezas e da democracia, mas que
continua existindo na dimensão da arte e da cultura; da resistência dos povos
sofridos que desde sempre são os escolhidos para os 80 tiros.
É a força
dessa história negra que fui buscar na Aruc, na presença dos adoradores do
samba, na voz potente e doce de Dhi Ribeiro. Como pode ser potente e doce ao
mesmo tempo?
E, para quem, como eu, está com saudade do Brasil,
Marquinho Art’Samba, puxador do samba-enredo da Mangueira deste
ano, estará Círculo Operário do Cruzeiro do domingo, 28 de abril. Bora?
Por Conceição Freitas – Fotos: Renato Araújo/Agência Brasília – Rejane
Agra/Divulgação – Metrópoles