O dia em
que Darcy Ribeiro se apaixonou por Anísio Teixeira
Crônicas
urbanas, crônicas de afeto e do viver -(Conceição Freitas)
Dois dos mais importantes intelectuais brasileiros
do século 20 – que mais tarde criariam a Universidade de Brasília –
tinham um pelo outro explícita antipatia, conta Darcy em Confissões,
autobiografia que escreveu quando estava perto de morrer de câncer.
O baiano Anísio achava
o mineiro Darcy um “ente desprezível”, por se dedicar à causa indígena.
Considerava um desperdício de energia e de inteligência cuidar de 0,02% da
população brasileira. Não sabia nada sobre índios, nem queria saber. E ainda
sobrava para o marechal Rondon, a quem Darcy chamava de “santo-herói”. Anísio
via nele um militar aloprado na sua obsessão em proteger os índios.
Darcy via
Anísio como um homem urbano, letrado, alienado, com posições políticas
conservadoras e americanizadas. Reconhecia, porém, “mesmo à distância, uma
qualidade de veemência, uma quantidade de paixão que não encontrava em mais
ninguém”. O baiano defendia a educação popular, a escola pública, laica,
obrigatória e gratuita, com “um ardor comovente”, sempre nas palavras de Darcy,
que deixou escrita sua paixão por Anísio
Um dia, as duas antipatias se encontraram. Um amigo
comum percebeu a bobagem que impedia aqueles dois gigantes de se aproximarem e
levou Anísio para assistir a uma conferência de Darcy. O antropólogo relatava a
convivência com os Ramkokamekra, de organização social muito
complexa. Quanto mais Darcy falava, mais Anísio resmungava: “São uns
gregos! Gregos!”. Seria uma desfeita, um desdém do educador baiano?
Até que
conseguiu entender que Anísio, de formação clássica, percebeu na organização
social dos Ramkokamekra uma sofisticação parecida com a dos atenienses e dos
espartanos.
“O certo
é que desde aquele primeiro encontro intelectual nos apaixonamos um pelo
outro.” Tanto que Darcy diz ter tido dois alter egos, Rondon e Anísio.
“Missionários… cada qual com sua causa, que foram ambas causas minhas. Foram e
são: a proteção dos índios e a educação do povo.”
Desde então, por muito tempo, não se largaram mais.
Durante anos e anos, viam-se diariamente, trabalhando juntos em projetos pela
educação pública universal e de qualidade. Participaram intensamente dos
debates sobre a Lei de Diretrizes e Bases, espécie de Constituição do sistema
educacional brasileiro.
Anísio
enfrentava a elite intelectual católica, que via na luta pela escola pública
laica, gratuita e obrigatória o propósito secreto e insidioso de transformar as
crianças brasileiras em aprendizes do comunismo. “Eu tinha entrado – conta
Darcy – no meio da tempestade, na voragem da maior guerra ideológica que o
Brasil viveu”. Estamos falando do começo dos anos 1950.
Com a construção de Brasília,
Darcy logo imaginou a chance de criar uma universidade que cultivasse o
saber e não apenas o conhecimento, e onde ninguém fosse perseguido
ou premiado em razão de sua ideologia.
A UnB só
foi possível graças à vocação política de Darcy e, por certo, aos seus olhos
faiscantes de encantamento e sedução. A Igreja queria uma universidade
católica, Israel Pinheiro queria a comunidade universitária bem longe do Plano
Piloto, e Juscelino não estava exatamente pensando em ensino superior. Darcy
conta que, para conseguir aprovar a lei no Congresso, buscou ajuda de Filinto
Müller, o temido chefe da polícia política de Getúlio, mais tarde eleito
senador.
Aprovada
a lei, Darcy quis que Anísio fosse o primeiro reitor e ele, vice-reitor. “Você
está trocando as bolas”, reagiu o baiano. Feito ministro da Educação e depois
chefe da Casa Civil de Jango, Darcy entregou a universidade a Anísio.
Viriam anos terríveis, a morte de Anísio Teixeira, em
1971 (a Comissão Nacional da Verdade encontrou fortes indícios de que ele foi
assassinado pela ditadura militar), o exílio de Darcy, a volta ao Brasil, a
retomada da democracia. E ficou para sempre a paixão florescente – floriu uma
universidade – entre esse dois brasileiros.
…
Darcy
teve tempo de concluir Confissões: Termino esta minha vida exausto de
viver, mas querendo mais vida, mais amor, mais saber, mais travessuras. A você
que fica aí, inútil, vivendo vida insossa, só digo: Coragem! Mais vale errar,
se arrebentando, do que poupar-se para nada. O único clamor da vida é por mais
vida bem vivida. Essa é, aqui e agora, a nossa parte. Depois, seremos matéria
cósmica, sem memória de virtudes ou de gozos. Apagados, minerais. Para sempre
mortos."
Conceição
Freitas – Arte: Kacio Pacheco - Metrópoles