Luiz Eduardo Soares, secretário nacional de Segurança Pública (Senasp), entre janeiro e
outubro de 2003, na gestão do então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos,
cientista político, antropólogo, especialista em segurança e um dos autores do
livro Elite da Tropa, que deu origem aos filmes Tropa de Elite.
Muitos governos investem em policiamento nas ruas
porque o policial uniformizado cria na população a sensação de segurança, mas
deixam de lado a prevenção e a investigação. Como mudar essa lógica?
A própria pergunta
aponta o caminho: muda-se essa lógica, investindo-se em prevenção e
investigação, o que exige transformação do modelo policial: desmilitarização,
ciclo completo em cada instituição policial e carreira única.
Falar em reduzir o
confronto da polícia com a população num governo como o de Bolsonaro que
defende o uso de armas por qualquer cidadão, com apoio de uma militância
ruidosa, é mais difícil?
Muito mais
difícil. Entretanto, falar é preciso.
No Rio, o
governador Wilson Witzel defende a execução de quem carrega fuzis e até cita a
possibilidade de explodir uma comunidade. Ele foi eleito com esse discurso num
estado dominado por sucessivos governos corruptos. Como explicar esse fenômeno?
A sociedade está
farta de tanto crime e clama por soluções. O demagogo que oferecer uma solução
simples e imediata ganha o voto. Ao longo dos próximos quatro anos, se colherá
mais decepção e ceticismo. E, de novo, outro justiceiro populista virá,
prometendo punição e vingança, e derrotará mais um governador fracassado. Até o
dia em que a sociedade perceba que fazer mais do mesmo, ainda que com mais
intensidade, não produzirá resultados diferentes.
O crime organizado
tem crescido dentro e fora dos presídios. Qual é a solução?
A solução é dupla:
em primeiro lugar, interromper o fluxo acelerado de encarceramento de pequenos
varejistas do comércio de substâncias ilícitas, presos em flagrante sem armas e
sem vínculo orgânico com organizações criminosas, dinâmica perversa que, além
de destruir a vida de milhares de jovens não violentos, contrata violência
futura, porque esses presos terão de se filiar a facções criminosas para
sobreviver no sistema penitenciário e a proteção será cobrada sob a forma de
lealdade, subsequentemente à sua saída do cárcere. Em segundo lugar, cumprir a Lei
de Execuções Penais. O Estado não a cumpre, o que o torna criminoso e cúmplice
do domínio que as facções exercem no sistema penitenciário.
Como reduzir o
tráfico de drogas com o consumo liberado?
Só faz sentido
legalizar o consumo, legalizando-se o comércio e a produção. É o que defendo. A
legalização acaba com o tráfico e com a guerra às drogas, que mata mais do que
as drogas.
O senhor é um dos
autores de Elite da Tropa, que deu origem aos filmes Tropa de Elite, uma
narrativa que cada vez mais realça a realidade brasileira. O que piorou
desde o lançamento dessas obras?
Até 2018, as
execuções extrajudiciais existiam e eram toleradas e clandestinamente
estimuladas por vários governos estaduais. Em 2019, elas são aceitas
explicitamente e estimuladas publicamente por diversos governos estaduais, pelo
governo federal, que encaminhou ao Congresso projeto de Lei propondo o
excludente de ilicitude, que, na prática, autoriza a pena de morte sem
julgamento. Resultado: só no estado do Rio, nos cinco primeiros meses deste
ano, houve 729 mortes provocadas por ações policiais, recorde histórico que
corresponde a um terço do conjunto dos homicídios.
Quais os fatores
mais graves para explicar indicadores tão altos de violência no Brasil hoje?
Além das
desigualdades abissais e do racismo estrutural, eu também destacaria a guerra
às drogas e a irracional arquitetura institucional da segurança pública,
definida no artigo 144 da Constituição, que exclui os municípios, subestima o
papel da União, joga toda a responsabilidade nos ombros dos estados, divide as
polícias estaduais em duas — uma investigativa, outra militar/ostensiva — e
divide as carreiras em duas esferas, a dos delegados e oficiais, a dos agentes
e praças.
Por que o senhor
propõe mudanças na estrutura policial?
Para que 80% dos
policiais brasileiros não sejam proibidos de investigar e para que a grande
massa policial não seja superexplorada. Observe que mais de 70% dos policiais
brasileiros são contrários ao nosso modelo policial.
Quais as
experiências exitosas em que o Brasil poderia se inspirar para alcançar
melhores indicadores de segurança pública?
São exemplos para
o Brasil todos os países que impõem às suas polícias respeito estrito aos
limites ditados pelo Estado democrático de direito. Mesmo eles têm problemas,
imagina o que tem ocorrido em nosso país, onde autoridades liberam policiais
para matar. O que não se compreende, aqui, é que, quando há tal autorização, o
que se obtém não é uma polícia mais forte e efetiva, mas, ao contrário, uma
polícia degradada pela anarquia e pela corrupção, ou seja, mais fraca e
indissociável do crime.
Qual a sua
avaliação sobre as medidas adotadas até o momento pelo governo Bolsonaro e pelo
ministro Moro nessa área?
Nós precisamos de
controle rigoroso do acesso às armas, menos encarceramento, menos brutalidade
policial letal, respeito à LEP (Lei de Execuções Penais), no sistema
penitenciário, mudança na Lei de drogas, com o fim da guerra às drogas, e
transformação da arquitetura institucional da segurança pública, a qual inclui
o modelo policial. O que Bolsonaro e Moro têm nos oferecido é mais acesso às armas,
mais encarceramento, silêncio sobre o continuado desrespeito à LEP, autorização
para a brutalidade policial letal, mais guerra às drogas e manutenção da
arquitetura institucional e do modelo policial. Além disso, nenhuma medida
objetiva foi tomada para reverter o quadro dantesco da superexploração da força
de trabalho policial. Ou seja, a dupla Bolsonaro-Moro tem nos dado o inverso do
que o Brasil precisa.
Ana Maria Campos – Coluna “Eixo Capital” – Foto:
José Varella/CB/D.A.Press – Correio Braziliense
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