JK foi assassinado? Livro organizado por pesquisadores da USP questiona
as circunstâncias da morte do ex-presidente do Brasil
*Por Silvestre Gorgulho
Quando se quer enganar a história, os fatos não fecham. E quando os
fatos não fecham, nascem e renascem as hipóteses, os boatos, as mentiras, os
rumores e o zumzum. E esse zumzum, apesar de estar na canção alegre e predileta
de Juscelino Kubitschek de Oliveira — Peixe vivo — é de tristeza e revolta.
Pois bem, o acidente que matou JK no km 165 da rodovia Dutra, em 22 de agosto
de 1976, há 43 anos, continua não fechando. E surge um novo livro para recontar
a história: O assassinato de JK pela ditadura: Documentos oficiais, organizado
por Alessandro Octaviani, Lea Vidigal e Marco Braga (professores e integrantes
de grupos de pesquisa da USP) e editado pela LiberArs. Este livro, em dois
volumes, foi lançado em São Paulo, em Brasília e no Rio de Janeiro, em agosto
de 2016, quando a morte de JK completou 40 anos. Agora, em 2019, a editora
acaba de relançar a obra com conteúdo idêntico, mas em tomo único. Para
entender bem o livro, nada melhor do que conversar com os autores do livro.
Juscelino liderou a modernização do Brasil com a construção de
Brasília- Foto tirada por Gervásio Baptista que foi capa da revista
Manchete na edição especial sobre a inauguração de Brasília.
Como a pesquisa começou? Por que nasceu o livro?
Lea Vidigal: — A pesquisa teve início quando a
Comissão Nacional da Verdade (CNV) se recusou a ouvir o Coronel Affonso
Heliodoro dos Santos (falecido em 20 de outubro de 2018) e Carlos Murillo
Felício dos Santos, como testemunhas do “caso JK”. São pessoas da maior
intimidade e convívio com o presidente Juscelino, que conheciam de perto as
circunstâncias imediatamente anteriores e posteriores à sua morte, fundamental
para qualquer investigação séria sobre um caso dessa magnitude.
Como mestranda em direito econômico, eu pesquisava a história do
planejamento econômico no Brasil. O governo JK era o momento estelar desse
processo, então naturalmente precisei aprofundar-me em seu estudo, e,
simultaneamente, em 2013, as comissões da verdade investigavam graves violações
de direitos humanos por todo o Brasil. Ao final daquele ano, tive acesso ao
relatório da Comissão Municipal da Verdade de São Paulo Vladimir Herzog, que
concluiu pelo assassinato político com base em 103 elementos de prova.
O que constava no relatório oficial?
Basicamente, o Relatório Preliminar da CNV sobre JK, lançado em abril de
2014, era uma reprodução malfeita do laudo oficial da ditadura sobre a morte de
Juscelino: fraudado para forjar a tese de acidente, absolutamente inconsistente
e inepto a revelar a verdade. Foi rechaçado pelo Judiciário mesmo à época da
ditadura, quando o motorista de ônibus Josias de Oliveira foi inocentado da
acusação de ter causado o acidente (ao supostamente colidir com o Opala em que
viajava o presidente na Rodovia Dutra). O laudo da ditadura - acolhido
calorosamente pela CNV — criou a versão de que a morte teria sido acidental
alterando e eliminando muitos elementos de prova. Josias de Oliveira foi usado
de bode expiatório no processo criminal, tendo inclusive sido noticiado seu
“suicídio” pela revista O Cruzeiro.
Por que o caso JK voltou à tona?
Marco Aurélio Braga: Sempre se soube que o caso
JK era repleto de elementos suspeitos e de mentiras, como a notícia plantada de
que JK teria morrido por colisão de trânsito, dias antes de realmente ocorrer,
ou mesmo os diversos planos dos militares que existiam desde a década de 1960
para matá-lo. Entretanto, o país demorou até chegar perto de investigações
sérias, amplas e técnicas. Com a instalação das chamadas Comissões da Verdade,
pensou-se que tal lacuna seria preenchida. A CNV, sobre JK, nada fez, a não ser
repetir e proteger a ditadura. Assim, o carinho do povo brasileiro por JK, que
é imenso até hoje, aliado ao surgimento de investigações sérias e técnicas,
como as da Comissão Rubens Paiva e da Comissão Vladimir Herzog, trouxeram o
caso novamente à tona. Hoje, universitários, cidadãos, jornalistas e artistas
estão rediscutindo o caso, que nos permitirá entender melhor um período que
nunca mais queremos que volte a se repetir.
O Opala que conduzia Juscelino na via Dutra e ficou completamente
desfigurado
Quais são as novidades do “Caso JK” que o livro traz?
Lea Vidigal: Em primeiro lugar, o livro reúne, de forma
inédita, todas as manifestações do Estado brasileiro com pretensão de validade
final sobre a morte de JK, algo que nunca havia sido feito anteriormente pela
historiografia brasileira. Em segundo lugar, buscou-se publicar os documentos
em sua forma original e na cronologia em que surgiram, para demonstrar a
evolução do assunto dentro do Estado, da maneira mais exata possível. Ao juntar
os relatórios das investigações mais sérias e técnicas — das Comissões “Rubens
Paiva” e “Vladimir Herzog” —, o livro reúne uma série de depoimentos, sentenças
judiciais, documentos estrangeiros, manifestações na imprensa, documentos
técnicos, entre outros, que estavam desconectados, soltos, fazendo com que a
conexão entre os elementos demandasse um esforço descomunal a qualquer brasileiro
interessado pela verdade sobre a morte de um Presidente da República. Este era
um dos objetivos da ditadura: que as peças da verdade nunca fossem juntadas,
que os elementos não fossem colocados em um todo. Assim, nunca seria possível
entender o que eles fizeram. O livro coloca as peças juntas e demonstra o que
eles fizeram, de maneira a que o leitor possa tirar suas próprias conclusões.
Para qual público essa obra é útil?
Marco Aurélio Braga: A obra é útil para um povo
interessado em tomar o seu destino nas próprias mãos, com alegria, vigor e
generosidade com o próximo – marcas que Juscelino deixou em seus governos, e
mesmo depois de sua cassação e perseguição. Por esse motivo, a obra tem um duplo
propósito: primeiro, revelar a verdade sobre o Caso JK sem qualquer filtro para
o leitor. Esse é um exercício de cidadania fundamental e inalienável do povo
brasileiro.
Em segundo lugar, queremos fazer despertar o interesse sobre o homem e a
vida pública de JK: quem foi este brasileiro? O que ele fez por sua pátria? Por
que quiseram assassiná-lo? Qual era seu projeto para o Brasil? Como resgatar a
energia do “Prefeito Furacão”, do “Presidente Bossa-Nova”? Esses objetivos são
ao mesmo tempo do historiador, do pesquisador, do político e dos cidadãos, que
têm como missão contribuir para a formação da consciência política, tendo o
direito e o dever de conhecer a história do seu país, a grandeza do qual
fazemos parte, e também os erros do passado, para que possamos fazer melhor no
presente e construir o futuro digno com confiança e liberdade.
Vocês lançaram o livro em 2016, em dois tomos. Agora a editora acaba de
lançar o mesmo livro em tomo único. Houve atualização?
Lea Vidigal: — Sim, agora em 2019 a editora acaba
de fazer um novo lançamento em tomo único. Ficou melhor apresentado e mais
fácil de manusear. O conteúdo é idêntico.
Como vocês avaliam o governo JK.?
Alessandro Octaviani - O Governo JK levou o Brasil
a dar um salto inédito em termos de desenvolvimento econômico e justiça social.
O Brasil cresceu mais de 7% ao ano em média, foi o maior salário mínimo da
história (até hoje não superado), a integração territorial e a construção de
Brasília, pela obra de grandes mestres e os candangos, entusiasmaram e ergueram
a honra do brasileiro em todos os cantos do país. A arte brasileira viveu uma
explosão criativa e o esporte foi campeão mundial em inúmeras modalidades. O
Brasil tocou e viveu o seu sonho.
Por que JK foi um dos primeiros a serem eliminados, em 1964?
Alessandro Octaviani: Sim, em 1964 JK foi
eliminado pela primeira vez pelos seus opositores golpistas, quando já era
candidato a presidente com o Programa “5 anos de agricultura para 50 anos de
fartura”. Teve seus direitos políticos cassados, foi exilado, preso e
publicamente difamado pela ditadura, com o apoio dos EUA. Em 1976, Juscelino
tinha recuperado formalmente seus direitos políticos e estava em plena
atividade, articulando politicamente sua volta ao cenário nacional. Ainda era
um dos líderes mais populares do país, e teria conduzido a redemocratização
como seu principal líder, dado seu carisma e sabedoria.
(*) Silvestre Gorgulho – Jornalista - Artigo compartilhado do jornal Correio Braziliense do dia 24/08/2019 - Fotos: Gervásio Batista (Arquivo Pessoal) - EA - Estadão