Nascidas com Brasília: as ocupações pioneiras. Com
a construção da capital, os trabalhadores começaram a povoar o Planalto
Central. Operários, engenheiros da Novacap, funcionários públicos e empresários
formaram ocupações além do Plano Piloto. No início, foram os acampamentos que
se tornaram cidades (*Por Gizella Rodrigues)
Quando Brasília começou a ser construída, em
outubro de 1956, o Planalto Central já era ocupado por dois núcleos urbanos que
davam ares interioranos à região onde seria erguida a capital modernista do
país. O mais antigo deles, Planaltina, já era uma cidade um século antes de a
nova capital começar a ser desenhada. Fundada em 1933, a outra, Brazlândia, era
um povoado da área rural do município goiano de Luziânia e tinha menos de mil
moradores em 21 de abril de 1960.
Com o início das obras, no entanto, as pessoas
começaram a povoar o quadrilátero destinado ao futuro Distrito Federal.
Primeiro, foram os engenheiros da Companhia Urbanizadora da Nova Capital
(Novacap) que chegaram quando Brasília ainda era um descampado de terra e mato
para planejar os primeiros passos da construção. Depois, vieram os milhares de
trabalhadores, comerciantes e empresários atraídos pelas oportunidades trazidas
pela criação de uma cidade do zero, no meio do nada. Por último, chegaram os
funcionários públicos transferidos do Rio de Janeiro.
O Núcleo Bandeirante tinha existência limitada ao
período da construção. Os lotes deveriam ser devolvidos à Novacap no final de
1959. Foto: Arquivo Público do DF
Naquela época, todos pensavam que os candangos
iriam embora depois da inauguração da capital. A Cidade Livre, onde hoje é o
Núcleo Bandeirante, por exemplo, o principal acampamento dos trabalhadores,
tinha existência limitada ao período da construção. Os lotes foram cedidos em
sistema de comodato, isto é, a escritura não era definitiva e os terrenos
deveriam ser devolvidos à Novacap no final de 1959.
Brasília, com o projeto primoroso de Lucio Costa e
reconhecida como Patrimônio Cultural da Humanidade, fora planejada para abrigar
500 mil pessoas, basicamente todas elas funcionários públicos e suas famílias.
Mas a força e persistência dos candangos, que se recusaram a ir embora com a
inauguração da capital, fez surgir mais cidades que o previsto pelo urbanista.
A partir desta quinta-feira (24), a Agência
Brasília publica uma série de três matérias que contam a história das primeiras
cidades surgidas ao mesmo tempo que Brasília ou logo após a sua inauguração –
hoje chamadas de Regiões Administrativas (RAs), mas originalmente batizadas de
cidades-satélites. Essa série faz parte de uma série maior que homenageia
Brasília às vésperas dos seus 60 anos. As reportagens são publicadas todas as
quintas-feiras desde o dia 21 de abril deste ano.
A primeira reportagem fala dos acampamentos que
acabaram ficando e se tornaram cidades. Núcleo Bandeirante, Candangolândia,
Paranoá, Vila Planalto e Vila Telebrasília. As duas últimas não se
transformaram em uma Região Administrativa, mas ajudaram a formar a RA I, o
Plano Piloto.
Os primeiros acampamentos: A Candangolândia
abrigava a sede da Novacap até 1959, quando a companhia foi transferida para o
Plano Piloto e o local passou a ser conhecido como Velhacap. Foto: Arquivo
Público do DF
Existe entre os pioneiros uma velha discussão sobre
onde nasceu Brasília. O que muita gente não sabe é que, com o início das obras
da capital, surgiram, ao mesmo tempo, dois núcleos urbanos com a mesma
importância histórica: Núcleo Bandeirante e Candangolândia.
Como parte das obras de infraestrutura necessárias
à construção de Brasília, foram abertas pela Novacap, em dezembro de 1956, as
principais avenidas do Núcleo Bandeirante, chamado de Cidade Livre, previsto
para funcionar como centro comercial e recreativo para as pessoas ligadas
diretamente à construção de Brasília, pois as cidades de Planaltina, Luziânia e
Brazlândia não ofereciam condições e infraestrutura suficientes para
sustentação das obras da nova capital.
Já a Candangolândia surgiu do primeiro acampamento
oficial promovido pela Novacap para administrar as obras de Brasília, em 1956.
A cidade abrigava a sede da Companhia, residências das equipes técnicas e
administrativas, posto de saúde, hospital, posto policial, dois restaurantes e
uma escola para os filhos dos funcionários.
Você sabia? Para incentivar a
vinda de comerciantes para o Planalto Central, o Núcleo Bandeirante era livre
do pagamento de impostos. Daí a origem do nome Cidade Livre.
Em 1959, no entanto, a Novacap foi transferida para
o Plano Piloto e a Candangolândia passou a ser conhecida como Velhacap. O
local, dotado de boa infraestrutura para a época e com variados equipamentos
públicos, se tornou uma alternativa de moradia para trabalhadores de todo o
país que chegavam para trabalhar na construção de Brasília. Com o fluxo cada
vez maior de pessoas que chegavam para a construção de Brasília os
acampamentos, que dariam lugar à Candangolândia, se transformaram em uma
pequena vila. Logo a população começou a demandar os elementos da vida
cotidiana de uma pequena cidade.
Cidade desmontada: O Núcleo Bandeirante também
abrigava o Hospital Juscelino Kubitschek de Oliveira (ou Hospital do IAPI) e o
atual Museu Vivo da Memória Candanga. Traçado com apenas três ruas, o
loteamento da Cidade Livre estava destinado a ter uso exclusivamente comercial
e, por esse motivo, não eram fornecidos alvarás para residências.
Em 1957, já existiam, em construções de madeira,
armazéns, casas de tecidos, restaurantes, barbearias, tinturarias, marcenarias,
açougues, farmácias, escolas (duas), cinema, bares, pensões e hotéis. Também
foram erguidos locais para cultos religiosos, como uma igreja batista, um ponto
para cultos kardecistas e uma igreja católica.
Com a aproximação da inauguração de Brasília e o
medo da desmontagem da Cidade Livre, surgiu um movimento de moradores que
reivindicava a fixação da cidade, contrariamente ao estipulado pela Novacap. O
Movimento Pró-Fixação e Urbanização do Núcleo Bandeirante chegou a ser apoiado
por Jânio Quadros em sua campanha presidencial, mas ele posicionou-se contra a
fixação depois das eleições.
Foi preciso muita luta. De um lado, o governo
tentou transferir os moradores para as cidades-satélites do Gama e Taguatinga,
já inauguradas, e ameaçou demolir as edificações. Do outro, integrantes do
movimento articulavam vagas para abrigar crianças em creches, buscavam apoio de
parlamentares e faziam comícios em favor da permanência.
A fixação do acampamento e sua transformação em
cidade veio com a aprovação e sanção da Lei nº 4.020, em 20/06/61. A partir de
então, os moradores passaram a lutar pela implementação da infraestrutura
necessária a uma cidade, que foi sendo feita ao longo da década de 1960,
momento em que as edificações de madeira foram sendo substituídas, aos poucos,
por edificações de alvenaria.
A barragem do Paranoá: Outra cidade que teve origem
a partir de acampamentos de candangos foi o Paranoá. Inicialmente, em 1957, a
região era ocupada por trabalhadores dos canteiros de obras montados para a
construção da barragem do lago Paranoá. Após a inauguração de Brasília, em
1960, os habitantes permaneceram no local devido à necessidade de conclusão das
obras da usina hidrelétrica. Nessa época, o acampamento de operários chamado de
Vila Paranoá já era composto por 800 moradias que abrigavam cerca de 3 mil
moradores.
Ataíde Pereira das Neves e a Igreja São Geraldo:
“Todas as crianças eram batizadas aqui”. Foto: Renato Araújo/Agência Brasília
“Era muita gente, sete companhias que faziam a
barragem e todos os operários moravam nesse acampamento”, conta o pernambucano
Ataíde Pereira das Neves, 79 anos, que veio para Brasília em 1957, aos 18 anos,
para passear. “Um conhecido nosso tinha vindo para cá, foi buscar a esposa e
nos contou coisas maravilhosas sobre Brasília. Eu quis conhecer a cidade que
estava sendo construída no meio do nada”, diz.
Ataíde veio para passar um mês e ficou dez anos sem
voltar para a terra natal. “Achei tanto emprego que acabei ficando. Meu pai era
um homem de posses e sempre me questionava, em telegramas, se eu não ia voltar.
Mas eu quis tentar. Naquela época pegavam as pessoas que queriam trabalhar pelo
braço”, diz. “Trabalhei de cozinheiro para os americanos (da empresa Raymond Concrete
Pile Company of the Americas), fui marteleteiro dentro da barragem (operava um
equipamento que perfurava o solo e as rochas) e fui tratorista. Até para o
Juscelino Kubitschek cozinhei, lá no Catetinho”, enumera o pioneiro
Paranoá na década de 1970. Foto:
Acervo pessoal. O antigo acampamento da Vila
Paranoá foi transferido para onde fica hoje a cidade e o local original
tornou-se área de preservação ambiental, o Parque Urbano e Vivencial do
Paranoá. Ao andar pelo local, seu Ataíde aponta: “Aqui ficava a delegacia, ali
era a escola e minha casa ficava na esquina”. Naquela época, os operários se
divertiam em festas que aconteciam na casa de Raimunda Lima Santos, 88 anos,
que também chegou em Brasília em 1957. Ela tinha 25 anos e veio acompanhar o
marido, que se empregou nas obras da barragem. “Viemos do Piauí em um
pau-de-arara. Aqui não tinha nada quando cheguei”, lembra. “Só tinha homem no
acampamento. As únicas mulheres eram eu, minha mãe e minha irmã”, conta.
Da época da construção da capital, os dois
pioneiros guardam boas lembranças. Dona Raimunda recorda-se da dificuldade em
fazer compras antes da inauguração da barragem. “Não passava ônibus e nem havia
comércio. Tínhamos que ir todo fim de semana para o Núcleo Bandeirante fazer
compras para passar a semana”, lembra.
Raimunda Lima Santos, 88 anos,
chegou a Brasília em 1957, aos 25 anos. Foto: Renato Araújo/Agência Brasília
No local onde era o acampamento, ficaram de pé
algumas estruturas, como a caixa d’água e a Igreja São Geraldo, construída em
1957 — a segunda igreja mais antiga do DF, tombada pelo pela Diretoria de
Patrimônio Histórico e Artístico do Distrito Federal (Depha) em 1993. “Todas as
crianças eram batizadas aqui. Era muito trabalho, mas, também, muita alegria. A
vida aqui era muito boa”, diz Ataíde.
No coração da capital: A Vila Planalto decorre da
instalação dos acampamentos de várias construtoras que ali se estabeleceram
desde 1956 para executar as obras da nova capital. Serviam para abrigar tanto
os técnicos envolvidos com as atividades de administração da Novacap quanto
funcionários de obra das empreiteiras. Funcionários de diferentes construtoras
se instalaram no local durante a execução de diferentes obras, como o Palácio
da Alvorada, o Brasília Palace Hotel, além da construção do Eixo Monumental e
da Praça dos Três Poderes.
Demolição de barracos na Vila
Planalto em 1968. Foto: Arquivo Público do DF
Em 1958, um grande conjunto de 22 acampamentos se
formava ao redor do conjunto das obras prioritárias para a cidade. Como os
demais acampamentos de obras, a Vila Planalto estava destinada a ser removida
logo ao final dos trabalhos, com a desmontagem das edificações de
madeira.
Porém, devido à sua localização privilegiada e
existência de boa infraestrutura no local, bem como por não haver, à época,
nenhuma política habitacional capaz de oferecer melhores opções de moradia para
a população, os moradores da Vila Planalto ali permaneceram, criando um núcleo
habitacional pioneiro em pleno coração da Capital da República.
À beira do lago: A Vila Telebrasília surgiu em 1956
como acampamento de funcionários da construtora Camargo Corrêa e se localiza à
beira do lago Paranoá, no final da Asa Sul. Semelhante a outros remanescentes
de acampamentos pioneiros, já não há exemplos de edificações de madeira
originais da época da construção.
A lei que regularizou a área e garantiu a
permanência dos moradores no local, de 1991, no entanto, exigiu respeito aos
padrões existentes de ocupação original com a manutenção da volumetria de
edificações baixas e presença de vegetação.
Assim, buscou-se a preservação da rua como espaço
de lazer e convívio cotidiano, semelhante ao contexto de pequenas cidades
tradicionais. A Vila Telebrasília constitui-se, atualmente, como um local de
habitação popular dentro do Conjunto Urbanístico de Brasília.
E mais um pouco de história… Na próxima
quinta-feira (31), o segundo capítulo da série Nascidas com Brasília conta a
história da criação das primeiras cidades-satélites. A capital ainda não havia
sido inaugurada, mas novos imigrantes desembarcavam no Planalto Central todos
os dias. A construção de acampamentos de madeira não atendia à demanda e a
Novacap decidiu criar cidades. Taguatinga foi a primeira delas. Confira.
Gizella Rodrigues – Agência Brasília