Dulcina é um teatro, Dulcina é uma atriz, Dulcina é
um espanto. Documentário de Glória Teixeira apresenta ao Brasil (e a Brasília)
uma mulher que colecionava emoções. Com ela, tudo parecia possível. (*Por Conceição Freitas)
Atenção, essa crônica contém spoiler. Até a noite
dessa segunda-feira (26/11/2019), Dulcina era nome de teatro, de escola, de um
prédio dentro do Conic. Era substantivo próprio masculino. Vagamente, talvez
apontasse para um nome de mulher, uma atriz de teatro de tempos tão antigos que
deles nem se fazia conta.
Dulcina existia, mas vagamente, como uma memória em
esquecimento. Depois do documentário de Glória Teixeira, apresentado no 52º
Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, Dulcina ganhou corpo, rosto, olhos,
sobrenome, história, identidade. Embora tenha se transformado num substantivo
próprio feminino, ganhou dimensões imensuráveis. Dulcina é uma força da
natureza – o tempo do verbo é o presente porque as tempestades, vulcões,
gêiseres, terremotos, trovões, relâmpagos, chuvas, ventanias, existem na
eternidade que é nos dado perceber, nós, os pobres mortais.
Dulcina dizia que colecionava emoções, é a frase
mais repetida no documentário. Era mística, acreditava no mistério. Nasceu
mambembe – a mãe pariu a menina durante uma temporada da companhia de teatro
pelo interior do Rio de Janeiro. Desde que estreou no palco, nunca mais
conseguiu viver sem os aplausos, essa delícia de reconhecimento de que os
humanos desesperadamente necessitam.
Fica difícil saber, se é que é possível saber, se
Dulcina era o teatro ou o teatro era Dulcina. Certas gentes transbordam de si
mesmas, como se o corpo fosse só o descanso de toda a imensidão que há dentro
delas.
Dulcina era assim, e o documentário de Glória
Teixeira nos oferece o espetáculo esplendoroso que foi/é essa mulher que, a
certa altura da vida, deixou o Rio para vir morar em Brasília, quando já era
reconhecida como a mais importante atriz da história do teatro brasileiro. E
quem diz é Fernanda Montenegro – outra mulher que parece pairar sobre todas as
humanidades, embora seja ao mesmo tempo tão humana quanto um bebê ou um
velhinho.
Não fica muito claro, pelo menos para essa espectadora que aqui
escreve, a razão pela qual Dulcina veio para Brasília. Há referências ao
impacto que a cidade causou nela naqueles anos 1970. Um espanto de Gagarin
descobrindo que a Terra era azul, um assombro de Clarice Lispector diante de
uma estrela espatifada.
Quando veio para o cerrado, Dulcina de Moraes já era a
grande dama do teatro brasileiro (o qualificativo pomposo esconde o talento
para comédia, vê-se no olhar malicioso e no sorriso maroto). Já havia criado a
Fundação Brasileira de Teatro. Estava com 64 anos – na época, década de 1970,
seria uma velha, mas fenômenos da natureza não envelhecem. Continuava bela,
altiva, incansável, implacável.
Em Brasília, a FBT se transformou na Faculdade
de Artes Dulcina de Moraes, projeto que Oscar Niemeyer deu de presente à atriz.
A documentarista Glória Teixeira oferece a Brasília seis Dulcinas em várias
fases da vida: Bidu Galvão, Carmem Moretzsohn, Iara Pietricovsky, Theresa
Amayo, Glória Teixeira e Françoise Fourton. Atrizes corporificando uma atriz da
grandeza de Dulcina – deve ser uma experiência mística.
Se houve Dulcina, não
há por que duvidar do impossível.
(*) Por Conceição Freitas - Fotos: Divulgação - Metrópoles