Gilberto Freyre sabia: só com arquitetura não se
faz uma cidade. Sociólogo reconhecia a grandeza de Brasília, mas alertava para
a necessidade de trazer cientistas sociais para ajudar a pensar a capital. (*Por Conceição Freitas)
Admirador e crítico de Brasília, Gilberto Freyre
esteve pelo menos duas vezes no canteiro de obras da cidade. Deixou escritos
sobre a glória e a tragédia de se construir a nova capital do Brasil com
arquitetura e urbanismo, mas sem cientistas sociais e ecologistas. Faltando
cinco meses para a inauguração, em novembro de 1959, o genial pernambucano
esteve na cidade pela segunda vez e, em entrevista à Rádio Nacional, apontou o
que de extraordinário acontecia e o que precisava acontecer.
“Brasília é, de certo, um esforço que honra a
capacidade de realização dos homens públicos, dos administradores, dos
arquitetos, dos urbanistas, dos sanitaristas, dos educadores, dos técnicos e
dos operários nele empenhados com um fervor que, em alguns, chega a ser um
fervor místico ou religioso.”
Aquilo que Juscelino chamou de “espírito Brasília”
não era tão somente frase de efeito, estratégia de marketing, era a percepção
de que a cidade havia sido tomada por uma febre coletiva, uma loucura
epidêmica, que transformou o clarão no Cerrado num lugar mágico. Tudo parecia
bom, tudo parecia que ia dar certo, existia um presente e um futuro.
Às custas da força de trabalho dos candangos, por
certo, da morte de incontáveis operários, mas pairava sobre o canteiro de obras
uma crença coletiva na vida afirmativa. É o “fervor místico ou religioso”, de
que fala Gilberto Freyre.
“Do ponto de vista artístico, Brasília é qualquer
coisa de maravilhoso.” Mas o pensador não via apenas a beleza da Casa Grande
nos palácios de Oscar e no urbanismo de Lucio. Gilberto Freyre sabia que a
cidade, por mais bela que fosse, precisava dar um passo adiante – precisava
cuidar de todos os que para cá vieram e cuidar do lugar onde a cidade se
inscreveu.
Gilberto Freyre: sociólogo deixou profunda
influência no pensamento brasileiro.
“Brasília não é uma criação no vácuo, mas dentro de
uma ecologia – a tropical e condicionada pela situação do Brasil, pelas suas
inter-relações internas (inter-relações dos quais Brasília vai se tornar o
centro) e pelas suas relações com o exterior: relações de uma já quase potência,
não só continental como atlântica.
”O sociólogo, antropólogo, jornalista, historiador
apontava para o planejamento regional que nunca se fez.
E não caía na esparrela do cosmopolitismo
fantasioso. Brasília tinha de ser, antes de tudo, brasileira, “um grande
triunfo no espaço tropical e no tempo moderno”. O que de fora viesse seria
recebido como “boas e saudáveis influências de caráter cosmopolita”. Antes de
qualquer outra coisa, Brasília teria de ser a síntese do Brasil, do melhor do
Brasil.
Gilberto Freyre conclui: “Sou dos que acreditam de
modo, posso dizer, absoluto, em que a interiorização da capital é uma
necessidade brasileira. Será um meio de tornar o Brasil um todo mais
dinamicamente inter-regional e, por conseguinte, um todo verdadeiramente
nacional”.
Nove anos depois dessa visita a Brasília, Gilberto
Freyre publicou “Brasis, Brasil, Brasília”, coleção de ensaios nos quais o
sociólogo aponta para a necessidade de aprendizado com os erros do projeto da
nova capital. Enquanto a invenção de Lucio Costa era espezinhada nos meios bem
pensantes do Sudeste, Freyre mantinha o que havia dito: “Brasília representa um
triunfo brasileiro grande demais para que seus erros sejam considerados à
revelia de suas virtudes”.
E insistia no planejamento regional, na mistura do
moderno com o tradicional. O moderno era só um momento. Havia uma tradição e
uma diversidade que precisavam ser valorizadas. Para que, finalmente, o Brasil
se afirmasse como Nação e nós, como um povo com identidade diversa e uma língua
comum.
(*) Por Conceição Freitas – Fotos: Mário Fontenelle
– Arquivo Público do DF - Metrópoles