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O que escreveram os dois Joões, o Rosa e o Cabral, sobre Brasília


O que escreveram os dois Joões, o Rosa e o Cabral, sobre Brasília. Os dois diplomatas visitaram a capital em construção e, entre o encanto e a desilusão, perceberam que a utopia nascia na contradição. (*Por Conceição Freitas)

Dois Joões, diplomatas, literatos, deixaram poemas, carta e conto sobre a nova capital que viram nascer. João Guimarães Rosa (1908-1967) e João Cabral de Melo Neto (1920-1999) navegaram entre o encanto por tão belo feito brasileiro, uma nova capital construída pelo gênio moderno, e as contradições da utopia. 

O mais velho dos Joões, o Rosa, visitou as obras da nova capital pelo menos duas vezes: em janeiro e em junho de 1958. Em carta aos pais, ele contou a aventura de ser candango por uns dias:

“No começo de junho, estive em Brasília, pela segunda vez, lá passei uns dias. O clima, na nova capital, é simplesmente maravilhoso, tanto no inverno quanto no verão. E os trabalhos de construção se adiantam, num ritmo e entusiasmo inacreditáveis: parece coisa de russos ou de norte-americanos. Desta vez, não vi tantos bichos e aves, como da outra, em janeiro passado — quando as perdizes saíam assustadas, quase de debaixo da gente, e iam retas no ar, em voo baixo, como bolas peludas, bulhentas, frementes, e viam-se os jacus fugindo no meio do mato, com estardalhaço; também veados, seriemas, e tudo. Mas eu acordava cada manhã para assistir ao nascer do sol, e ver um enorme tucano, colorido, belíssimo, que vinha, pelo relógio, às 6 hs.15’, comer frutinhas, durante dez minutos, na copa alta de uma árvore pegada à casa, uma “tucaneira”, como por lá dizem. As chegadas e saídas desse tucano foram uma das cenas mais bonitas inesquecíveis da minha vida”. Guimarães Rosa 

Três anos depois, Rosa escreveu um conto, As margens da alegria, publicado no jornal O Globo, edição de 1º de julho de 1961. O narrador conta as percepções de um menino numa viagem “inventada no feliz”. Tudo é encanto, desde “as nuvens de amontoada amabilidade” que vê da janelinha do avião. “O menino fremia no acorçoo, alegre de se rir para si, confortavelzinho, com um jeito de folha a cair”.

Quando o voo findava, o menino viu Brasília. “A grande cidade apenas começava a fazer-se, num semi-ermo, no chapadão: a mágica monotonia, os diluídos ares”.

O pequeno visitante foi levado à Granja do Ipê (onde morou Israel Pinheiro, entre o Núcleo Bandeirante e o Riacho Fundo). Anotou intimamente tudo o que via — a poeira, o veado campeiro, a canela de ema, a siriema, o buriti e “essa paisagem de muita largura, que o sol grande alargava”. 

O menino seguia vendo todas as coisas pela primeira vez: “Sustentava-se delas sua incessante alegria, sob espécie sonhosa, bebida, em novos aumentos de amor. E em sua memória ficavam, no perfeito puro, castelos já armados. Tudo, para a seu tempo ser dadamente descoberto, fizera-se primeiro estranho e desconhecido”. 

No almoço, o menino ouvia o tio, a tia, os engenheiros. “Esta grande cidade ia ser a mais levantada do mundo”. Na sobremesa, marmelada “da terra, que se cortava bonita, o perfume em açúcar e carne de flor”. O menino provava do doce até hoje feito pelos negros do Quilombo Mesquita, a 40 km do Plano Piloto. 

O menino que Rosa inventou percebeu que em Brasília tudo morria muito rapidamente para que tudo nascesse na mesma velocidade: “Tudo perdia a eternidade e a certeza; num lufo, num átimo, da gente as mais belas coisas se roubavam. Como podiam? Por que tão de repente? Soubesse que ia acontecer assim, ao menos teria olhado mais o peru aquele. O peru-seu desaparecer no espaço. Só no grão nulo de um minuto, o menino recebia em si um miligrama de morte. 

Já o buscavam: — “Vamos aonde a grande cidade vai ser, o lago…” 

Encantado com o cerrado, triste com a morte de um peru na casa onde estava hospedado, o menino percebe a destruição da paisagem original e da vida que nela havia: 

“Mal podia com o que agora lhe mostravam, na circuntristeza: o um horizonte, homens no trabalho de terraplenagem, os caminhões de cascalho, as vagas árvores, um ribeirão de águas cinzentas, o velame-do-campo apenas uma planta desbotada, o encantamento morto e sem pássaros, o ar cheio de poeira. Sua fadiga, de impedida emoção, formava um medo secreto: descobria o possível de outras adversidades, no mundo maquinal, no hostil espaço; e que entre o contentamento e a desilusão, na balança infidelíssima, quase nada medeia. Abaixava a cabecinha.” 

O outro João, o Cabral, também deitou no branco palavras encantadas sobre a nova capital. Deixou cinco poemas inspirados na nova capital, sem contar outros sobre o engenheiro e poeta Joaquim Cardozo e sobre arquitetura. No poema “Mesma mineira em Brasília”, ele revela os dois Brasis de uma mesma cidade: 

“No cimento duro, de aço e de cimento, 
Brasília enxertou-se, e guarda vivo, 
esse poroso quase carnal de alvenaria 
da casa de fazenda do Brasil antigo”. 

O Brasil colonial, das casas grandes, se transformava em Brasil moderno sem perder o pé da arquitetura dos tempos escravocratas. Um país que se moderniza, mas não se despreende do traço original de sua formação. Como se Brasília fosse uma pessoa que leva consigo toda a carga do vivido e, mesmo que tente se libertar com uma nova arquitetura de vida, estará sempre presa à sua arquitetura vernacular. Uma utopia contaminada de passado. 

Ou, no dizer poético do professor Roniere Menezes, da Universidade Federal de Minas Gerais, “uma esperança desconfiada” dos dois Joões diante do espanto-Brasília.

(*) Conceição Freitas - Metrópoles



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