Enfermeira, índio, homem vestido
de mulher. Tudo pode no Carnaval Inventar um personagem para os dias de folia é
um exercício de libertação de si mesmo. Vigiar o folião é uma espécie de
higienismo do sonho. (*Por Conceição Freitas)
A fantasia está para o Carnaval como o sonho está para o sono. É no
território da imaginação que os desejos vencem as inibições. Tem sido assim,
tudo indica, desde sempre. Os mais antigos povos de que se tem notícia
inventavam rituais e neles vestiam as fantasias que simbolizavam as pulsões de
vida (e o medo da morte) de seu tempo e lugar. Vestiam-se para conversar com os
xamãs, para receber um xamã, para ir à luta, para domar o mal.
Fantasia é liberdade, é alteridade, é sair de si
mesmo por algum tempo para se crer outro, é ocupar a pele do outro para se
livrar da própria pele – há uma escravidão nessa coisa de estar sempre no mesmo
corpo, com a mesma história. Por isso, atores, atrizes, escritores, essa gente
que se finge ser outra, são invejáveis fugitivos da prisão de si mesmo. Habitam
o outro, no mais genuíno exercício de empatia.
Pobre de nós, os que acordamos e dormimos com a
mesma identidade, a mesma monotonia. E, para nós, prisioneiros de nós mesmos, o
Carnaval é o reino da liberdade e a fantasia, nossa chance de (finalmente!) tirar
férias de nós mesmos.
No terreno da fantasia não há
proibições, salvo aquelas que são uma ameaça à dignidade humana e que são
prescritas em lei. Um folião vestido de Hitler tem de ser detido porque está
infringindo a lei. Porque sonha em destruir todo aquele que não corresponder ao
seu delirante desejo de perfeição ariana (e em países tropicais, o que é mais
delirante ainda).
Se o desejo delirante da raça perfeita tivesse se
extravasado num grande bloco carnavalesco, com todos os alemães vestidos de Hitler,
dançando ao som das marchas militares, com os generais da SS trocando as fardas
por saiotes de bailarina ou por quaisquer outras fantasias indomáveis, talvez o
mundo tivesse se livrado do holocausto. Como uma psicanalista de botequim,
imagino que foram as fantasias não realizadas dessa gente maluca que os fez
querer destruir o mundo, já que tinham obrigatoriamente de conviver com seus
inconfessáveis tormentos.
Onde está o problema de se fantasiar de índio (Alessandra Negrini, belíssima)? Ou de
o Cacique de Ramos, um dos blocos mais importantes do Rio de
Janeiro, continuar com as alegorias de cocares e penas com que desfila há quase
60 anos? Berço do Fundo de Quintal, patrimônio do samba brasileiro, o Cacique
teve, entre seus criadores, dona Conceição do Espírito Santo, filha espiritual
de Mãe Menininha do Gantois. O marido de Conceição, também fundador do bloco,
se chama Aymoré. As alas do bloco têm nomes indígenas – Apache, Carajás,
Cheyenne, Comanche, Tamoios, como se um menino da década de 1950 tirasse dos
velhos faroestes americanos os heróis do Cacique de Ramos, que tem como
abre-alas um índio americano estilizado.
Numa tirada que lembra Jânio Quadros proibindo o
uso de biquíni nas praias, o Conselho Municipal de Igualdade Racial, de Belo
Horizonte, emitiu uma orientação aos esperados 5 milhões de foliões: que
evitem fantasias de índio, cigano, negra maluca, enfermeira sensual, empregada
doméstica, homem vestido de mulher. Alegam racismo, objetificação da mulher,
desrespeito à comunidade trans e aos rituais indígenas.
É como se um pelotão de fiscais das fantasias humanas fosse vigiar os desejos de cada
folião para os impedir de ser um outro, mesmo que só no Carnaval. Um higienismo
no mundo onírico, uma limpeza moral do que o pelotão considera ofensa aos negros,
às mulheres, aos índios, aos ciganos. Esticada a corda, nenhuma escola de samba
poderia desfilar neste Carnaval e cada um de nós que recalcasse a fantasia,
porque ela ofende aquele que se vê projetado no outro.
Pesquisador do Carnaval carioca e da cultura
popular brasileira, Luiz Antonio Simas pontuou bem, em entrevista ao Uol:
“Pautar o que pode e o que não pode é contra a própria lógica da festa, não é
producente e cria um precedente perigosíssimo. Porque se hoje favorece causas
identitárias, amanhã pode trabalhar na lógica da censura e vai conter uma
porção de coisas…. Temos de entender que o Carnaval tem muito de profanar o
sagrado e sacralizar o profano”.
A luta contra o preconceito tem
muitos outros territórios nos quais pode e vai avançar. Não será lacrando os
poucos dias de fantasias libertas que se vai aumentar o bloco dos ativistas dos
direitos identitários e dos demais que lhes são tão próximos. É uma fantasia de
dominação.
(*) Conceição Freitas - Metrópoles