O voo do carcará
*Por Severino Francisco
Enquanto o mundo explode, no intervalo das chuvas, quando o sol despontou, aproveitei para dar uma volta pelas ruas do condomínio horizontal em que moro. Ele é fronteiriço a uma mata e, por isso, reserva, quase sempre, surpresas no convívio com os animais silvestres.
Já relatei, neste mesmo alto de página, o êxtase com a coreografia, a concatenação, a sincronia, a elegância e o ritmo das evoluções das andorinhas no céu em um dia que se armava uma chuva. Elas botavam no chinelo a Esquadrilha da Fumaça, com voos rasantes, acrobacias e deslocamentos rápidos no espaço.
Riscavam o azul, se reduziam a pontos negros minúsculos e, em seguida, retornavam com a mesma euforia. O condomínio é íngreme, quase tropecei e levei um tombo ao me concentrar na apreciação das nuvens de andorinhas, pois não queria perder nenhum lance. Felizmente, me reequilibrei e saí da experiência sem nenhuma avaria.
Durante o fim de semana, dei uma volta pelas cercanias para desenferrujar os ossos, tomar um pouco de sol e espairecer. Estava entretido na marcha quando, de repente, ouvi um grasnido metálico, um grito de bicho em guerra. Olhei para os lados, mas logo constatei que o drama se passava no espaço, era preciso olhar para o alto.
Mirei e avistei um grupo de carcarás assanhados. A princípio, pensei que esquadrinhavam o espaço em busca de alguma presa. Mas, ao observar mais atentamente, percebi que o embate era entre eles. De repente, divisei duas aves de porte médio grasnando e despencando. Ambas eram carcarás.
Parecia aquelas cenas de filmes de guerra em que o avião abatido por uma rajada rola no espaço aéreo, vertiginosamente, para se espatifar no chão. No entanto, em uma manobra espetacular, o carcará atacado se recuperou e retomou o voo para o alto com um arranque vigoroso.
Talvez tenha sido alguma intriga amorosa, pois, passado o arranca-rabo, o grupo voltou a planar no alto, no teto do céu, em voo imponente, de olho em alguma presa. De lá, perto das nuvens, eles monitoram tudo que acontece aqui embaixo.
Já cogitei dar uma bronca em um carcará que destrinchava uma ave menor no quintal. Mas me lembrei do personagem de Monteiro Lobato que queria inverter a posição das frutas: botar as melancias no alto e as jabuticabas em ramas pelo chão. Certo dia, ele dorme e lhe cai uma jabuticaba na cabeça. Também desisti de reformar a natureza. O cerrado é um teatro da vida e da morte. (Vídeo)
(*) Severino Francisco – Colunista do Correio Braziliense – Foto/Ilustação: Blog- Google
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CRÔNICA