Lembranças da peste
*Por Bartolomeu Rodrigues
Quando eu era
criança, devia ter uns sete, oito anos, peguei febre-tifo em meio a uma endemia
que dizimou muitas crianças na cidade. Faz bastante tempo, numa época e lugar
onde não havia vacina como se tem nos dias de hoje para quase tudo. Então,
quando não era o vento trazendo sarampo e dordolhos, era a pestilenta varíola
que chegava marcando as vítimas de cicatrizes purulentas que chamávamos de
bexigas.
A tifo, essa
veio traiçoeiramente, feito bicho-papão, ninguém esperava, botaram a culpa nos
banhos de rio e nas águas das cacimbas, cheias de girinos, caçotes e outros
assassinos invisíveis.
Febre
altíssima, quase me levou à morte, reduziu-me ao couro e osso, entrevado, sem
um fio de cabelo na cabeça. Fui, numa palavra, desenganado, termo que equivalia
a abandonar toda a esperança. “Vamos aguardar as próximas 24 horas”, a voz
grossa do doutor ecoou no quarto. Nessa época, médico visitava os doentes na
casa da gente. Engoli o choro, nem forças eu tinha pra me esgoelar.
Vinte e quatro
horas que duraram uma eternidade. Cada minuto de sobrevivência sendo comemorado
como milagre. Ali permaneci, isolado, por 60 tristes dias. Escapei, contudo,
para contar a história justo agora, quando tudo o que é belo na vida de repente
ficou sombreado ante o medo da morte.
O que me
curou? As injeções aplicadas por seu Olympio da farmácia, o homem mais sabido
que conheci. Merece um Nobel pelas vidas que salvou distribuindo frascos de
biotônico e remédios para vermes. Mas ainda faço careta quando penso na sua mão
pesada enfiando agulhas no braço, na coxa, na bunda, onde desse.
A dor me
transportava a viagens pelo espaço sideral. Foi assim que conheci as crateras
da Lua, as nuvens de Vênus, os desertos de Marte, as tempestades de Júpiter, os
anéis de Saturno, todos os planetas conhecidos e por conhecer. Cá entre nós: só
eu sei da existência de um corpo celeste para além da órbita de Plutão, mas
deixo essa descoberta para o futuro.
Além das
orações. Minha mãe, minhas irmãs, dona Pastora, foram tantas as promessas que
desconfio continuar com saldo negativo no céu, mesmo após peregrinar por
grutas, cavernas e santuários misteriosos sertão adentro. Sobrevive até hoje
num canto da sala, repintada de cores vivas, a belíssima estátua de gesso de
São Sebastião Mártir, o santo varão livrador da peste. Herança dos meus pais,
que já partiram deste mundo.
Ora, minha
gente, tudo isso diz muito, porém falta falar do amor, não o amor às coisas que
vão e voltam como ondas, mas o amor essencial, que é permanente. Naqueles dias
confinado, quando tudo-tudo parecia perdido, apareceu-me um anjo, de carne e
osso, na forma de uma morena, de olhar profundo e sorriso enigmático. Seus
dentes eram mais brancos do que a neve do pico do Himalaia. Visita rápida, na
companhia de uma comadre qualquer, só pra ver o menino doentinho.
Contudo,
disparou alguma coisa por dentro e, ao vê-la afastar-se, prometi a mim mesmo
não morrer. Não ali, não naquele momento. Eu ia atrás dela até o fim do mundo.
Porém, jamais
a encontrei novamente. Donde concluí que eu havia me apaixonado... pela vida. A
minha primeira namorada não foi, como pensei, uma ilusão: ela esteve ali para
provar que o amor é mesmo o esteio da vida. É, numa linguagem sertaneja, mais
forte do que uma junta de bois carregando o fardo da nossa breve existência. E
será ele quem, afinal, vai nos ajudar a atravessar essa tormenta.
(*)Bartolomeu Rodrigues - Secretário de Cultura e Economia Criativa do
Distrito Federal – Foto/Ilustração- Blog-Google
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BRASÍLIA - DF