População negra,
coronavírus e racismo ambiental
*Por Ilka Teodoro
Demorou quase
60 anos para uma mulher negra ocupar a Administração de Brasília, a cidade que
se substantiva no feminino tanto pelo próprio nome quanto pela maioria de
mulheres circulando nos espaços públicos. Cidade planejada e em expansão,
enfrenta os desafios do ordenamento territorial, descaracterizações do projeto
original e aridez do espaço urbano ainda hostil às mulheres e a outros grupos
minorizados.
A população
negra, apesar de majoritária, não ocupa o território proporcionalmente,
concentrando-se nas áreas periféricas e deslocando-se para o centro diariamente
por longos períodos para fazer a economia local funcionar. A rodoviária do
Plano Piloto é a cidade em síntese.
Brasília é
jovem capital que se consolidou como referência arquitetônica e cultural. No
entanto, a maior área urbana tombada do mundo, patrimônio da humanidade, também
reproduz a estrutura do país, sedimentada em séculos de colonialismo e
escravidão.
No mês de seu
aniversário, a cidade se vê obrigada a cancelar as comemorações sexagenárias e
se une ao mundo num protocolo de guerra contra o coronavírus, trazendo-nos a
reflexão sobre sua ocupação e a saúde coletiva em território desigual.
É momento em
que a saúde de um indivíduo depende da saúde de toda a comunidade.
Interdependência é a palavra da hora, como bem colocado por Debora Diniz em
entrevista recente. E a Covid-19 coloca-nos em xeque como sociedade.
Como lidar com
o fato de que os que movimentam a economia constituem grupo de risco? Como
isolar em casa os que fazem da rua sua morada? Como proteger idosos que são
responsáveis pela maioria dos domicílios no Brasil? Como resguardar mulheres
negras na linha de frente do cuidado? Como garantir acessibilidade de
informação e atendimento às pessoas com deficiência?
As condições
socioeconômicas de uma população se refletem nas condições de saúde. Benjamin
Franklin Chavis Jr., amefricano (pra lembrar um termo caro para Lelia Gonzalez)
e um dos líderes do movimento pelos direitos civis, cunhou o termo racismo
ambiental como a “discriminação racial no direcionamento deliberado de
comunidades étnicas e minoritárias para exposição a locais e instalações de
resíduos tóxicos e perigosos, juntamente com a exclusão sistemática de minorias
na formulação, aplicação e remediação de políticas ambientais”.
Victor de
Jesus, na dissertação Coisas negras no quarto de despejo: Saneando
subjetividades, corpos e espacos detalhou o conceito ao descrever a
“institucionalização histórica do racismo pelo aparelho estatal,
reverberando nas políticas públicas a produção de espaços urbanos com
infraestrutura precária/ausente e condições ambientais e de moradia insalubres
para grande parcela da população negra. A compreensão do Estado e do
planejamento urbano estatal como (re)produtores de desigualdades raciais e do
racismo é fundamental para compreender a relação entre saneamento e população
negra”.
É impossível
debater a justiça ambiental ao analisar as políticas nacionais sem levar em
consideração o impacto estrutural que o racismo pode ter, direta ou
indiretamente, em corpos negros. A condição de saúde, atravessada por fatores
econômicos, políticos, sociais, culturais e ambientais, faz que a população
negra experimente maior risco de morbidade e mortalidade.
A emergência
em saúde provocada pela Covid-19 revela como o racismo institucional é
responsável por deixar grupos populacionais para trás quando se trata de acesso
a serviços de saúde, educação, mobilidade, habitação, trabalho, água potável,
saneamento e segurança alimentar. Ou seja, a desigualdade no Brasil constitui
comorbidade que coloca a maioria de sua população (negra) no grupo de risco.
E são essas as
razões pelas quais não se pode falar em “isolamento vertical” no Brasil sem
reconhecer o racismo presente na proposta. Essa ideia tem como ponto de partida
a estrutura vertical/piramidal da sociedade brasileira construída a partir da
subalternização da raça, como pontuado por Sueli Carneiro, sendo a população
negra a base dessa estrutura.
E são também
as pessoas que vivem nos grandes aglomerados periféricos, sem acesso a serviços
elementares. São as pessoas que, sem condições de testagem em massa pelo
Estado, estariam mais expostas, sem uso de equipamentos de proteção adequados e
atuando como vetor para suas comunidades, diante de um vírus que não reconhece
a verticalidade. Ao contrário, faz a disseminação horizontalmente, sem
distinção e numa velocidade assustadora, capaz de levar ao extermínio grupos
populacionais em situação vulnerável e ao colapso do sistema de saúde.
A saúde
coletiva nos impõe uma série de desafios que precisam ter como norte o
reconhecimento do racismo estrutural e instrumentos de reparação histórica e
redução de desigualdades. A saída é coletiva e passa por renda mínima e
proteção social, economia do cuidado, fortalecimento do SUS e das universidades
públicas, justiça reprodutiva e planejamento familiar, acessibilidade, passando
pela ampliação da participação e representatividade da população negra,
indígena e outros grupos étnicos para garantir políticas públicas e serviços
que contemplem suas especificidades. Que a pandemia seja prenúncio de novo
tempo, novos paradigmas e outra conformação dos espaços de poder.
(*) Ilka
Teodoro - Mestranda em direitos humanos pela UnB, é administradora do
Plano Piloto, Correio Brazilinse, foto/Ilustração/Blog-Google
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