Extra! Extra!
Em tempos de negacionismo científico que custa vidas
humanas, nada melhor do que um filme bem dirigido baseado em fatos reais sobre
a biografia de um grande matemático indiano envolto no laboratório do social,
das vaidades e impiedades.
Por Victor Dornas
Enquanto milhares de apoiadores do governo Bolsonaro ignoram
a situação grave da pandemia e promovem passeatas para tentar abafar as 8 horas
de depoimento do ex-juiz Sérgio Moro, a Netflix oferece em seu catálogo brasileiro
o filme “O Homem que viu o infinito”, uma biografia romantizada e
bastante competente do matemático indiano Srinivasa Ramanujan.
O filme apresenta vários temas interessantes, porém o mais evidente
deles talvez seja um ensaio sobre a vaidade humana, uma vez que, no caso,
trata-se do choque de um grupo de estudiosos reforçados pela própria
notoriedade tendo que lidar com uma força da natureza que ameaça a ideia de que
são, de fato, tão bons assim. Na psicologia, chama-se essa neurose como
transtorno por deficiência dissociativa, isto é, quando uma mente se agarra a
uma ideia qualquer e passa a tomá-la como porto seguro inabalável e transforma
questionamentos em ameaças prioritárias.
A romantização baseada em fatos reais muitas vezes se
distancia bastante daquilo que pretende mostrar a fim de captar audiência por
ser entretenimento, isto é, criou-se uma banalização deste termo pela imensa
maioria das obras cinematográficas fictícias que usam o termo apenas como um
chamamento publicitário, sem serem, de fato, biografias fidedignas. A Netflix é
especialista em publicar filmes e séries desse tipo, a exemplo da fictícia
biografia da Madame CJ Walker que analisei há tempos nesta coluna. A história
de Ramanujan não escapa disso, pois tudo é feito ali para agradar o público e
não para se manter um relato fiel daquilo que de fato ocorreu.
Temas controversos como os casamentos indianos são tratados
da forma mais doce possível e oculta-se características daquela cultura que
seriam mal digeridas no ocidente. Um exemplo é a idade da esposa de Ramanujan e
como se deu de fato a união dos dois. No filme, passasse uma ideia de filme da
Disney. Parece um Aladdin do mundo científico, um tanto Shakespeariano até. Na
realidade, a coisa era bem mais visceral pois Janaki, a esposa de Ramanujan,
tinha somente dez anos quando foi consumada no matrimônio. Tudo isso é comum no
cinema uma vez que a ideia do diretor não é promover uma discussão sociológica
e sim estimular nossas emoções.
Todo o desconforto da comunidade acadêmica europeia com uma
figura indiana tão superior, entretanto, é evidentemente verdadeiro. A política
que vivemos hoje no Brasil é marcada por essa sanha dissociativa onde a ideia
deve ser a proteção do político divinizado. Se alguém com a reputação impoluta
resolve delatar crimes sobre o presidente, o apoiador militante não quer nem
saber quais são os fatos alegados, ou as provas apresentadas. De antemão, o
militonto já sentencia a questão confabulando teses que mantenham
salvaguardadas a programação em sua mente de que aquele homem santo não merece
ser crucificado.
Bolsonaro chama Moro de Judas pois, assim como Lula, o presidente se
acha de fato equiparável ao Cristo e, aos poucos, perde a vergonha de admitir.
No filme, a comunidade científica não assimila a realidade de
Ramanujan. Uma figura modesta vinda de uma cultura vista por eles como inferior não seria capaz de
produzir conceitos tão elegantes, superiores. O mestre, mesmo sendo um homem da
ciência, passa a confabular hipóteses que justificassem o que a mente é incapaz
de aceitar, por deficiência dissociativa. Aquele indiano desgraçado deve ter
roubado a ideia de alguém. Deve ser um golpe. Deve ser um conluio, uma piada.
Inúmeras ideias fantasiosas se apresentam para negar a realidade que, no caso, ameaça
a estabilidade de uma mente acostumada a crer em certas coisas que devem ser
mantidas como inabaláveis.
Todos nós temos esses defeitos, em maior ou menor grau.
Faz parte do funcionamento da nossa mente. A questão que diferencia uma alma nobre de outra enferma é a capacidade de admitir que erramos e, com esforço, tentar entender a realidade que se apresenta a contragosto.
Faz parte do funcionamento da nossa mente. A questão que diferencia uma alma nobre de outra enferma é a capacidade de admitir que erramos e, com esforço, tentar entender a realidade que se apresenta a contragosto.
A ciência é a ferramenta adequada para conter nossos impulsos
megalomaníacos.
A história de Ramanujan, ainda que pincelada com ficção, é um
ótimo convite para reflexões.
Victor Dornas – Colunista do Blog do Chiquinho Dornas