Erika Beatriz perdeu a
mãe, Maria Marta de Farias, durante a pandemia: "Fico imaginando o que se
passava na cabeça dela no hospital, sozinha, sem poder receber ninguém"
*Por
Alan Rios
Covid-19 matou mais de mil brasilienses. O novo
coronavírus foi a causa da morte de 1.015 moradores do Distrito Federal e
infectou 84.287 pessoas na capital, 69.693 recuperaram-se da doença.
Homens, idosos, negros e pessoas com comorbidades aparecem entre as vítimas
mais frequentes
Mais de 1 mil moradores do Distrito Federal
morreram em decorrência do novo coronavírus. Entre 23 de março e ontem, 1.015
habitantes da capital do país não sobreviveram à covid-19. Para efeito de
comparação, o número de mortes em quatro meses é maior do que a soma de vítimas
de acidentes de trânsito fatais e homicídios no DF em todo o ano de 2019, quando,
no total, houve 692 óbitos em ambas as ocorrências.
A maior parte dos contaminados pela doença é mulher
(52,6%), mas a maioria dos mortos pelo vírus é homem, que compõe 57,8% das
estatísticas. Pessoas acima de 60 anos e com comorbidades cardíacas aparecem no
topo do risco. Ceilândia continua sendo a cidade que mais perdeu moradores, com
232 mortes. Além disso, dados divulgados pela Companhia de Planejamento
(Codeplan), no início do mês, mostram que negros correspondem a 53,9% dos
pacientes que não sobreviveram no DF. “Quando a minha mãe faleceu, pensei:
‘Amanhã, quando sair o número de mortes pelo coronavírus no jornal, ela estará
ali’. E muita gente não consegue perceber o valor dessas estatísticas. Não
estão nem aí. Diminuem, dizendo que quem morreu era velho ou tinha
comorbidades. Mas ali são pessoas, são famílias inteiras que sofrem”, desabafa
Erika Beatriz, 40 anos.
A empresária e a mãe dela, Maria Marta de Farias,
65, são de Taguatinga. A região é a segunda do DF com mais mortes pela
covid-19. A paciente morreu há menos de um mês e deixou como marcas a alegria,
a energia e a bondade, características ressaltadas por todos que a conheciam.
“Ela foi internada no começo de junho, no Hospital Regional da Asa Norte
(Hran), com uma gripe bem forte e baixa saturação. Chegou a ser levada para a
unidade de terapia intensiva (UTI) do Núcleo Bandeirante e lutou até o dia 25
(de junho)”, relata Erika.
Sofrimento: Maria Marta tinha hipertensão e doenças pulmonares,
mas tinha uma vida ativa antes da pandemia. Participava de atividades na
igreja, visitava amigos e passava o tempo com a família. “Quando a gente
conversava sobre a morte, eu falava para ela, brincando, que faltaria espaço no
cemitério de tanta gente que iria ao enterro. E ela se divertia. Mas tivemos
essa perda de uma forma muito diferente, porque perder parente para a covid-19
é muito cruel”, lamenta a filha.
Erika avalia que todo o processo da infecção, desde
o estado de saúde grave até o fim trágico, envolve um sentimento diferente de
outras doenças ou fatalidades. “É um sofrimento grande do começo ao fim. Fico
imaginando o que se passava na cabeça dela no hospital, sozinha, sem poder
receber ninguém. Depois, com o falecimento, colocam o corpo dentro de três
sacos, lacram o caixão e levam ao cemitério, onde a gente não pode fazer uma
missa, colocar flores ou vestir quem amamos com uma roupa especial. É
desumano”, lembra Erika.
Nos últimos dias de dona Maria, uma enfermeira
pediu para que os familiares enviassem um áudio à paciente pelo celular, para
amenizar a distância. Especialistas lembram que não poder ver o ente querido
depois da morte dificulta o processo do luto. “Nos casos de mortes pela covid-19,
o indivíduo não consegue ver a realidade concreta. Isso pode trazer transtornos
psicológicos para os familiares, que estão impedidos daquele ritual típico do
velório. Então, há uma dificuldade de entender esse processo natural. Procurar
um especialista pode ajudar nesse período doloroso”, recomenda a psicóloga
Kátia Araújo.
Outro nome entre os óbitos é o de Hernandes
Ribeiro, 45. Funcionário terceirizado da Companhia Energética de Brasília (CEB)
e morador de Ceilândia, ele morreu em 4 de julho e deixou mulher e duas filhas.
“Ele tinha comorbidades, e a doença evoluiu muito rápido. Com quatro dias no
hospital, precisou ser intubado e acabou não resistindo semanas depois”, conta
o irmão Daniel Ribeiro, 49.
Para os familiares, não poder se despedir trouxe
mais dor. “Só pudemos fazer aquele acompanhamento fúnebre, seguindo o carro com
o caixão da capela até o local do enterro. Quando o corpo chega lá, são só
cinco minutos que temos para nos despedir, de longe. Isso foi mais um
sofrimento para nós”, diz Daniel. Enquanto Hernandes estava internado, a mãe
dele, de 77 anos, também lutava contra a doença. “Para ela, está sendo ainda
mais difícil, porque ela estava se tratando no Hospital Regional de Ceilândia
(HRC) e só soube do falecimento depois que saiu de lá”, afirma Daniel.
Estabilidade nas ocorrências
*Por Jéssica Eufrásio
Além das 27 novas mortes confirmadas ontem, a
Secretaria de Saúde do Distrito Federal contabilizou mais 1.875 pessoas
contaminadas pelo novo coronavírus. O total de casos passa de 84,2 mil. Somados
brasilienses e pacientes de outras unidades da Federação, a covid-19 fez 1.112
vítimas no DF. Do total de infectados, 69.693 (82,7%) recuperaram-se da doença.
Subsecretário de Vigilância à Saúde, Eduardo Hage
afirma que os próximos dias devem apresentar continuidade na desaceleração do
número de casos. “(É) o que vem sendo observado nas duas últimas semanas.
Observa-se uma estabilidade na ocorrência de internações de casos graves — em
leitos de UTI (unidade de terapia intensiva) — e de óbitos. Mas essa tendência
é sempre mais lenta do que a (diminuição) da ocorrência de casos, pela própria
evolução da doença”, explica o médico.
As 27 mortes registradas ontem ocorreram entre 29
de junho e 19 de julho. Segundo Hage, esse total deve cair a uma média entre 15
e 20 nos próximos dias. “É importante referir que a letalidade — o número de
óbitos dividido pelo número de casos — tem se mantido entre 1,3% e 1,4% há
meses. Isso indica que a rede de atendimento tem conseguido ampliar a
capacidade para receber pacientes mais graves. A média do país é de 3,8%. O DF
apresenta uma das taxas de letalidade mais baixas”, destaca o subsecretário.
Controle: O infectologista Hemerson Luz considera possível
notar uma estabilização, apesar dos números altos. Porém, ele associa o
resultado às medidas tomadas nos últimos meses. O médico também ressalta que há
descobertas novas sobre o micro-organismo diariamente; por isso, podem haver
divergências em relação às ações mais recomendadas para combater o aumento de
casos. “A curva está estabilizada agora, mas só teremos leitura de qualquer
medida tomada hoje daqui a 14 dias. Agora, estamos vendo números daquelas
adotadas 14 dias atrás”, observa.
Professor da
Universidade Católica de Brasília (UCB) e doutor em saúde pública, Roberto José
Bittencourt defende um esforço para a identificação dos novos contaminados,
atrelado à garantia de isolamento desses pacientes e de pessoas próximas a
eles. “Podemos trabalhar nessa perspectiva do platô, mas precisamos fazer um
trabalho de vigilância epidemiológica. É a única medida sustentável, efetiva e
mais barata. Temos perdido adesão ao isolamento. E temos um exército de agentes
comunitários de saúde e de controle de endemia que podem fazer esse trabalho (de
monitoramento)”, argumenta.
(*) Alan Rios – Jéssica Eufrásio - Correio
Braziliense
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