Risco e sobrevivência sobre duas
rodas. No primeiro
capítulo da reportagem especial sobre as condições de trabalho dos entregadores
do Distrito Federal, o Correio detalha o dia a dia da profissão, a relação com
as empresas de aplicativo e as principais reclamações da categoria
*Por: Jéssica Eufrásio - Guilherme Goulart
No comando da motocicleta ou sobre
os pedais da bicicleta, os entregadores ganharam destaque especial na pandemia
do novo coronavírus. O serviço prestado por meio de aplicativos de delivery
tornou-se essencial para manter muita gente em casa e evitar a disseminação da
covid-19. Além disso, absorveu parcela significativa de pessoas que ficaram
desempregadas com o fechamento de diversas atividades. No entanto, a crise
desencadeada no início da quarentena aumentou a concorrência e empurrou para o
trânsito mão de obra com pouca ou nenhuma experiência, formação ou habilidade
sobre duas rodas.
A mudança no perfil da profissão
levou a categoria a denunciar piora nas condições de trabalho e exploração por
parte das empresas. Mobilizados por sindicatos e associações, motoboys e
ciclistas paralisaram as entregas em todo o país, em 1º de julho. Em Brasília,
cerca de 500 reuniram-se na Esplanada dos Ministérios para reivindicar
autonomia e direitos básicos. A cobrança continuará em 25 de julho, com pedidos
de fim dos bloqueios pelas plataformas, transparência na forma de remuneração,
aumento das taxas por quilômetro percorrido e responsabilidade dos aplicativos
por eventuais acidentes e infecções pela covid-19.
Para entender os riscos, as falhas,
o estresse e os gargalos do serviço, o Correio saiu às ruas do Plano Piloto, do
Sudoeste e de Taguatinga por três dias. Pela manhã, à tarde e à noite, a
reportagem acompanhou a rotina e as dificuldades dos entregadores no tráfego do
Distrito Federal. A história de quatro deles será contada nesta edição, cada
uma acompanhada de estatísticas, análises de risco e normas técnicas
relacionadas ao delivery na capital do país.
Rotina começa na madrugada: São 5h30. A essa hora, durante o inverno, a luz
matinal sequer delineia os contornos de Ceilândia. Na região administrativa
mais populosa do Distrito Federal, milhares de pessoas partem para o batente.
Uma delas apronta-se silenciosamente. De capacete, tênis, jeans e jaqueta
reforçada, a técnica de enfermagem Cindy Kemilly Silva, 24 anos, monta a Yamaha
Fazer laranja de 150 cilindradas e corta o asfalto por 11km. Hospitais e postos
de saúde atravessam-se pelo caminho, mas o destino da jovem profissional da saúde
é outro.
No Pistão Sul, Cindy junta-se a
cerca de 50 outros motociclistas. O grupo aguarda o repasse da primeira leva de
entregas em frente ao galpão de uma empresa de delivery. As chances de
conquistar corridas mais lucrativas são maiores para quem chega cedo. Em dias
bons, Cindy acomoda 30 pacotes no baú da moto e roda até 100km em seis horas.
Mesmo assim, o esforço é pouco recompensado. “Fico bem cansada para ganhar R$
60, R$ 80. Tem gente que tira R$ 200, mas trabalha o dia inteiro. A demanda está
alta (com mais entregadores na rua) e, financeiramente, o retorno é cada vez
menor”, lamenta.
Antes da labuta, a fome não vem. O
que deveria ser café da manhã acontece, muitas vezes, só na hora do almoço.
“Como apenas uma banana antes de sair de casa. Minha segunda refeição é às 10h.
Isso quando dá tempo de comer ou tomar água”, conta. Nesse período, Cindy
garante entregas de Brazlândia a Planaltina. A rotina no asfalto, cercada de
estresse, pressão e risco, repete-se há pouco mais de dois meses. Sem
oportunidade para atuar na área de formação, a jovem embarcou no ramo do
delivery. “O meu sonho é ser bombeira. Vou correr atrás disso.”
Enquanto a farda não vira
uniforme, roupa apropriada e equipamentos de segurança compõem o figurino de
Cindy. Máscara também, mas a proteção deixa a respiração desconfortável. A
jovem sofre de bronquite e acha mais seguro encarar as ruas do que os
corredores de um hospital na pandemia. “No calor, a gente sua, e o motor da
moto fica quente. Com a chuva, viseira, óculos e pochete do celular embaçam.
Não dá. Mas a gente tem de dar um jeito de conquistar o que quer”, afirma. “É
corrido, perigoso, mas a fome e as contas não esperam”, sentencia.
Cindy
Kemilly Silva está entre os até 12 mil entregadores da capital. Sobre duas
rodas, seja de moto, seja de bicicleta, a categoria reclama das condições de
trabalho e da relação com as empresas — na capital, há cinco em atuação: Rappi,
iFood, Uber Eats, Loggi e James Delivery.
“O nosso sofrimento é comum. Cada app
exige exclusividade e tem um sistema diferente de pontuação, score, avaliação,
gorjeta. Queremos ser autônomos, de fato. Esperávamos que fôssemos valorizados,
pois a nossa importância aumentou na pandemia”, ressalta Alessandro Sorriso,
presidente da Associação dos Motoboys Autônomos e Entregadores do Distrito
Federal (Amae/DF). Segundo ele, a categoria reivindica uma legislação
específica para o serviço de delivery. “Não queremos CLT, mas que as empresas
acabem com bloqueios injustos e cobrem as taxas corretas. Tratam a gente como
descartáveis”, critica.
Alta demanda no almoço: No momento em que Cindy retoma o
rumo de casa para cuidar do filho pequeno, Renivan Lima, 29 anos, cumpriu a
metade das corridas do dia. Ele trabalha no horário do almoço, um dos períodos
mais frenéticos para quem entrega comida. Entre as 10h e as 14h30, o
motociclista percorre bairros de classe média e alta. A rota inclui Plano
Piloto, lagos Sul e Norte, além da Octogonal e do Sudoeste. Renivan mora em
Luziânia (GO), a 60km de tudo isso.
O motoboy
prefere os turnos fixos. Nessa modalidade, ele tem direito a um dia de descanso
por semana e a uma folga mensal no domingo. Contudo, há restrições. Em caso de
imprevistos, não é possível deixar o expediente na última hora. E, se houver
descumprimento da carga horária, a empresa cobra multa de até R$ 90 pela
jornada incompleta. Assim, quando trabalha das 10h à 0h, Renivan mal consegue
ver a mulher e o filho, de 2 anos. Ao voltar para casa, ambos estão dormindo.
Mas, entre um pedido e outro, o entregador consegue um momento para pensar na
família e nos planos de ser policial militar.
Por causa
da pandemia, não é mais possível buscar entregas nos restaurantes dos
shoppings. Renivan e outros tantos entregadores aguardam em uma área externa —
ou no subsolo —, até que várias refeições fiquem prontas de uma vez. “O
primeiro a chegar acaba se dando mal. Perdemos tempo. Esperávamos que, por ter
muito delivery por aplicativo, agora, as coisas fossem mais rápidas”, comenta.
“E temos um período para chegar ao restaurante. Senão, a corrida some da tela.
Além de ela ir para outro entregador, ficamos uma hora sem receber novos
pedidos”, reclama.
A
depender da época, o prazo coloca os profissionais à mercê do sol a pino ou dos
temporais. Nem sempre jaqueta, botas e luvas são suficientes. Necessidades
básicas ficam de lado por causa da pressa. “O que mais pesa é a carga horária,
que é alta, além da dificuldade que temos de ir ao banheiro, almoçar ou quando
está muito frio”, relata. “Eu trabalhava como motorista em uma empresa de
metais, mas passaram por uma fase difícil e me demitiram. Comprei uma moto
usada e comecei a trabalhar com entregas, porque foi o que achei”, justifica.
Renivan Lima ganha a vida arriscando-se sobre duas
rodas. Desde 2010, as mortes de motociclistas são maiores do que os óbitos em
automóveis. No período, 921 pessoas que pilotavam ou seguiam na garupa desses
veículos envolveram-se em acidentes fatais até julho de 2020, segundo dados do
Departamento de Trânsito (Detran). Além disso, desde 2000, jamais a capital
fechou o ano com mais mortes de motociclistas do que de pedestres. Mas, até o
início deste mês, a estatística mostra uma tendência de mudança nesse cenário.
Vinte e oito motociclistas morreram. São três óbitos a mais do que de
pedestres. Parte dessa situação explica-se pela alta do serviço de delivery por
causa da pandemia e da falta de capacitação. “A atividade cresceu no período e
é realizada, muitas vezes, por pessoas despreparadas”, afirma Marcelo Granja,
diretor de Educação de Trânsito do Detran.
Tarde com menos movimento: As manchas de graxa na calça de José Gregório Lopez
Nieves, 35 anos, entregam as horas dedicadas sobre o selim da bicicleta. O
venezuelano sai de casa por volta das 10h, pouco depois da primeira refeição do
dia — a próxima será só à 1h, ao retornar para o lar, no Recanto das Emas.
“Estou acostumado. Na Venezuela, passamos fome. Aqui, não”, compara. Nascido na
cidade de El Tigre, no estado de Anzoátegui, José Gregório veio para o Brasil,
em 2018, como refugiado. No ano passado, mudou-se para a capital federal.
A oportunidade como entregador de
aplicativo surgiu por causa da pandemia. Antes disso, o mecânico trabalhava
como eletricista na obra de uma escola particular, na Asa Norte. A crise
chegou, os colégios fecharam, famílias suspenderam o pagamento de mensalidades
e a construção parou. José Gregório, a mulher e os três filhos precisavam de um
sustento com urgência — outros dois, mais velhos, ficaram na Venezuela e
dependem do dinheiro enviado pelo pai. Assim, o delivery se impôs como opção.
À tarde, o movimento é menor.
Pelas vias do Plano Piloto, do Sudoeste ou do Setor de Indústria e
Abastecimento (SIA), um casaco e um boné ajudam a amenizar os efeitos do sol.
No rosto, a máscara serve de barreira contra o vírus. José Gregório pedala em
uma bicicleta com motor improvisado. Diariamente, ele gasta de R$ 15 a R$ 20
para colocar gasolina em um pequeno tanque instalado sobre o quadro. O
combustível facilita a viagem de 30km entre o Recanto das Emas e o Plano
Piloto. No restante do tempo, ele pedala mais de 100km para buscar e entregar
os pedidos.
Quando atende a uma média de 15
chamados, José Gregório tira R$ 60 por dia. A família também conta com uma
cesta básica concedida pelo governo. No entanto, o que o venezuelano ganha por
mês mal cobre gastos com aluguel e outras despesas. Mesmo assim, ele se prende
ao otimismo, na torcida de que a situação melhore. “Se nem eu nem ninguém nos
cuidarmos, a pandemia não vai acabar nunca. E quero que ela passe rápido, para
eu arrumar um emprego formal. Está muito difícil para todo mundo”, desabafa.
José Gregório Lopez nieves trabalha em uma
profissão regulamentada por uma lei sem valor prático. “Hoje, está tudo ao
Deus-dará. Com a aprovação da Lei nº 12.009, de 2009, achávamos que teríamos a
mesma organização dos vigilantes, mas não é o que acontece. Há omissão. As
empresas contratam qualquer um”, critica o presidente do Sindicato dos
Motociclistas Profissionais do DF (Sindmoto), Luiz Carlos Galvão. A norma
estabelece idade mínima para motoboy ou mototaxista — 21 anos —, os itens de
segurança obrigatórios e a exigência de um curso especializado, regulamentado
pelo Conselho Nacional de Trânsito (Contran). “A maioria dos empresários não dá
condições. Não temos dinheiro para comprar os equipamentos. E quem deveria
fiscalizar não o faz”, lamenta.
Compromisso até a meia-noite: Chega o último turno. A lua, minguante e alaranjada, típica da seca,
surge por trás dos prédios da Asa Norte. As ruas do centro de Brasília têm
menos carros durante a pandemia. Mas há entregadores por toda parte. O Correio
acompanha uma de perto. No comando da bicicleta, Anna Rafaella Tschiedel Berg,
26 anos, cruza entrequadras, comerciais, Eixão e tesourinhas. É o início do
expediente. Quando os pedidos levam até duas horas para aparecer, ela encerra o
dia. Mas, se tudo dá certo, a demanda só termina à 0h.
No inverno de clima desértico, o
frio noturno gela até os mais acostumados. Anna Rafaella carrega dois casacos,
por precaução. Eventualmente, uma capa de chuva. Além disso, há sempre uma
garrafa de álcool em gel na parte externa da mochila térmica, onde acomoda os
alimentos. O uniforme inclui tênis, calça comprida, camiseta, capacete e
máscara. As roupas são confortáveis, para o caso de a jovem ter de pedalar.
Mesmo elétrica, a bicicleta exige fôlego quando acaba a bateria de seis horas.
Anna Rafaella saiu de Formosa (GO)
para estudar gestão de políticas públicas na Universidade de Brasília (UnB).
Desde que se formou, no ano passado, ela se divide entre o trabalho com
delivery e os estudos para concurso. “Pensei em fazer entregas para seguir na
capital federal, pagar o aluguel e me virar. A minha única renda vem disso”,
conta. Por semana, a jovem ganha de R$ 150 a R$ 400. Tudo depende da demanda e
do tempo dedicados ao ofício. Depois que o celular recebe uma chamada de
entrega, a paisagem e o compromisso com o destinatário viram companhia até o
fim da jornada.
A entregadora atua em áreas
próximas à comercial da 408 Norte, onde mora em uma quitinete. Em oito horas,
Anna Rafaella percorre cerca de 45km. “No começo, ir de bike é empolgante. Eu
fazia 60km, 70km por dia. Com o passar dos meses, dói o joelho, a perna. Então,
comprei a bicicleta elétrica”, explica. “O trabalho é bom, dá para tirar um
dinheiro legal. Só que a pessoa tem de gostar de ficar o dia inteiro na rua.
Todas as reivindicações da pauta da última greve são válidas. Não é nenhum luxo
o que pedimos. É só para ter um trabalho digno”, completa Anna.
Anna
Rafaella Tschiedel Berg atua em um ramo imprevisível, mas com tendência a
aumentar. Pesquisa promovida pela consultoria Galunion e pelo Instituto
QualiBest, em maio, mostrou que o setor do delivery "ainda é um grande
desafio". Entre os 754 entrevistados de todo o país, 36% disseram que os
gastos com delivery subiram. Porém, houve queda com esse tipo de despesa para
39% dos participantes. Após o período de confinamento, 21% acreditam que a
despesa com o serviço vai aumentar, enquanto 43% dizem que manterão o consumo
como atualmente. Além disso, 68% concordam totalmente ou em parte que
entregadores têm tomado cuidados de higiene durante o atendimento. “Há muito o
que fazer para inovar nos negócios em alimentação”, conclui o levantamento.
O
que dizem as empresas: Das cinco
empresas em atuação no serviço de delivery por aplicativo no Distrito Federal,
três responderam à reportagem. Por-mail, o iFood confirmou o cadastro de 170
mil entregadores no Brasil, sem dar o recorte na capital. A rede não trabalha
com sistema de ranking e pontuação. "O algoritmo de alocação de pedidos
leva em consideração fatores como, por exemplo, a disponibilidade e a localização
do entregador, o engajamento na plataforma e a distância entre restaurante e
consumidor", detalha.
Em
relação à suposta falta de transparência em taxas e porcentagens, o iFood
detalhou que "o valor da entrega é calculado usando fatores como a distância
percorrida entre o restaurante e o cliente, uma taxa pela coleta do pedido e
uma taxa pela entrega ao cliente, além de variações referentes a cidade, dia da
semana e veículo utilizado para a entrega." Além disso, desde maio, todas
as rotas do app têm um valor mínimo de R$ 5 por pedido.
Os
entregadores do iFood recebem, desde o fim de 2019, o Seguro de Acidente
Pessoal, que cobre despesas médicas e odontológicas, “bem como indenização em
caso de invalidez temporária ou permanente ou óbito decorrente do acidente”.
Quanto à covid-19, desde março, “foram implementadas medidas protetivas, que
incluem fundos de auxílio financeiro para quem apresentar sintomas” e para
aqueles do grupo de risco. Até o momento, a empresa investiu mais de R$ 25
milhões nessas iniciativas.
A Rappi
conta com 200 mil entregadores cadastrados no aplicativo na América Latina. A
empresa de origem colombiana informou, também por e-mail, que a cobrança de
frete “varia de acordo com clima, dia da semana, horário, zona da entrega, distância
percorrida e complexidade do pedido”. Dados da companhia mostram, ainda, que
cerca de 75% dos trabalhadores ganham mais de R$ 18 por hora. A Rappi também
permite que os clientes deem gorjeta aos entregadores por meio do aplicativo.
Além
disso, a empresa trabalha com um programa de escores “criado para tanto
reconhecer quanto priorizar entregadores parceiros com um melhor nível de
serviço na plataforma, ao mesmo tempo em que permite equilibrar a distribuição
dos pedidos versus número de entregadores parceiros logados, fazendo com que o
entregador passe a ter ainda mais clareza e transparência.”
A Rappi
oferece, desde o ano passado, seguro para acidente pessoal, invalidez
permanente e morte acidental. “O seguro vale para todos os entregadores parceiros
e qualquer tipo de veículo, incluindo motos e bicicletas”, detalhou. Em relação
à pandemia, a companhia elaborou diversos protocolos, como incentivo do
pagamento via app, distribuição de álcool em gel e máscaras e criação de um
fundo para apoiar financeiramente os colaboradores com sintomas ou confirmação
da covid-19.
Em nota,
o Uber Eats informou que “todos os ganhos (com a empresa) estão
disponibilizados de forma transparente para os entregadores parceiros, no
próprio aplicativo, ficando clara cada taxa e valor correspondente. Não houve
nenhuma diminuição nos valores pagos por entrega, que seguem sendo determinados
por uma série de fatores, como a hora do pedido e a distância a ser
percorrida.” A empresa adotou medidas preventivas contra o novo coronavírus,
como opção de entrega sem contato, por meio do recurso “Deixar na porta”, além
de ferramenta para identificar o uso de máscaras pelos entregadores, a partir
de um checklist on-line, que inclui uma selfie para verificar a utilização da
proteção facial.
A Loggi e
a James Delivery não responderam e-mails e mensagens enviados pela reportagem,
até o fechamento desta edição.
(*) Jéssica Eufrásio - Guilherme Goulart - Fotos: Marcelo Ferreira/CB/D.A.Press - Ana Rayssa/CB/D.A.Press - Minervino Júnior/CB/D.A.Press -
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