Meu amigo Renato Russo
*Por » José Carlos
Vieira
“Renato (Russo) era o
professor de ‘educação artística’, não era apenas música, ele enfatizava muito
a questão filosófica e cultural envolvida na criação dos discos”, revela com
exclusividade ao Correio, Carlos Trilha, produtor musical do líder da Legião
Urbana. Às voltas com projetos artísticos e um intenso curso de aviação, o
tecladista falou também sobre a polêmica criada depois que a polícia do Rio fez
buscas e apreensões nas casas de um fã e de um produtor. “Acho muito improvável
que hajam músicas novas”, diz.
Como
a Legião Urbana e o Renato Russo cruzaram o seu caminho musical? O mais engraçado da minha história em relação a
Legião Urbana é que eu, nos anos 1980, não gostava do som que a banda fazia,
não entendia a linguagem. Como músico, na época, eu estava interessado em
outros estilos, apesar de ter tido uma base forte de rock na minha formação.
Quando me mudei para o Rio de Janeiro, em 1989, tive a sorte de cair no meio
dos roqueiros da Zona Sul, do pessoal do Kid (Abelha), dos músicos do Léo
Jaime, que foi meu primeiro trabalho no Rio, do Cazuza, do Frejat. Todo mundo
se conhecia e logo fiquei frequente neste meio, tocando com a maioria dos
artistas do pop rock em grandes shows como o Viva Cazuza e Baú do Raul para a
Rede Globo. Em 1991, Mú Carvalho, era o tecladista da Legião, na época, e ele
estaria impossibilitado de realizar alguns shows e me indicou para substituí-lo
nessas ocasiões.
Como é da minha característica, cheguei no primeiro ensaio sabendo todo o
repertório, com tudo escrito, e com os timbres de teclado absolutamente
idênticos aos originais, pois meu setup era o mesmo que a Legião utilizou nos
discos anteriores à minha entrada. Quando cheguei no primeiro ensaio Renato
estava sentado olhando um caderno, me olhando ainda de longe disse:
— Oi, bem-vindo! Somos a Legião.
— Eu sou o Trilha, sou roqueiro, toco simples, mas já tirei todo o repertório e
preparei todos os sons.
Renato logo me tranquilizou:
— Oi Trilha, eu sou o Renato, também somos roqueiros e tocamos simples, nem se
preocupe com isso, vamos ficar meses aqui!
Após duas semanas de ensaio fui efetivado, não seria mais apenas um substituto.
A estas alturas eu já compreendia a riqueza musical e a força da poesia que
havia no trabalho da banda.
Você integra o seleto grupo de instrumentistas que ajudaram a dar o peso e a
suavidade sonora da Legião numa fase em que a banda buscava novos caminhos.
Muitos fãs te chamam de o quarto legionário. Como era conversar com Renato
Russo sobre as possibilidades de arranjos? Nos ensaios da Legião
não conversávamos muito sobre os arranjos em si, cada um ia tocando da sua
forma, se encaixando, buscando um jeito de fazer parte do grupo, Renato
aprovava com um elogio ou desaprovava, com uma piada, e a gente ia se olhando e
pronto. A expressão dos colegas ao te ouvir dizia tudo sobre a ideia que você
apresentava. Era assim que acontecia.
Acredito que o piano acústico passou a integrar a sonoridade da Legião com mais
força logo depois que participei como produtor dos discos solo do Renato.
Depois disso, foi natural participar dos discos da banda, havia um entendimento
musical, uma cumplicidade artística com ele. Na realidade, Renato completou
minha educação musical. Aos 21 anos, eu tinha talento, mas pouca cultura. Ele
me deu alguns livros, e quase 200 CDs. Muitos eram presente, mas a maioria era
“trabalho”. Ele chegou algumas vezes com uma pilha de CDs em cada mão, me
esticava uma e dizia: isto é “presente”, e depois esticava a segunda e dizia,
isto é “trabalho”. Pode ter certeza que, em poucos dias, ele ia te ligar
perguntando sobre os CDs e era melhor já deixar a resenha bem ensaiada (risos).
Renato era detalhista ao máximo e perfeccionista. Como seria o
líder da Legião hoje, na sua opinião? O perfeccionismo do Renato
era mais ligado à direção artística do álbum como um todo, ele não tinha tanto
foco na parte técnica, apesar de estar muito atento à qualidade final. Cada
elemento que entra ou sai de um arranjo traz um espírito, uma história com ele,
este aspecto cultural que cada som representa era mais importante para ele, que
o aspecto técnico da execução ou gravação daquele som. Pequenas desafinações e
imperfeições de execução eram toleradas, desde que não quebrassem a “onda” e
estivessem com o espírito certo. Com muita insistência, conseguia convencê-lo
que eu precisava refazer ou concertar algo, ele sempre preferia a vibração da
primeira gravação. O mais frequente era manter o primeiro registro e
consertá-lo apenas onde era realmente necessário, regravando um trecho ou editando
no computador, quando se tinha acesso ao recurso.
Nos últimos dias a Legião ocupou as redes sociais e os sites de
notícias com uma operação policial em busca de supostas canções inéditas de
Renato. Como você viu todo essa espetacularização em torno da memória de
Renato? Essas músicas existem mesmo? Se existem, têm qualidade? Acredito
que este acontecimento partiu de um engano, de uma confusão entre o que seriam
“versões” inéditas e “composições” inéditas. Já é público que gravações
diferentes de músicas já lançadas existem, e muitas. São registros de ensaios,
de programas de tevê e rádio, shows ao vivo, versões de copias tiradas ainda
durante o processo de produção dos discos (cópias de monitor), copias com vozes
guia, sem a letra definitiva, esse tipo de coisa.
Acho muito improvável que hajam músicas novas, pois o processo da Legião para
compor e finalizar as músicas em estúdio era lento, não surgiam pérolas de uma
hora para outra. As bases eram gravadas, em sua maioria, ainda sem letra e
muitas vezes sem melodia, Renato as criava depois, sozinho, em casa, ouvindo
essas bases gravadas. As versões finais, que conhecemos, surgiam depois de um
longo processo. Por isso, não acredito na existência de composições inéditas.
Durante a criação e a produção, cópias eram feitas, a maioria em fitas K7 ou em
fitas DAT, mas nada disso tem qualidade para ser lançado comercialmente.
Contudo, todo esse material tem valor histórico e deve ser preservado,
independentemente de tudo isso.
Sagrado coração é uma música de Renato que tem você como coautor.
Como foi surgiu essa parceria? A música surgiu durante os ensaios
para o Stonewall. Eu passava muitas tardes na casa dele neste período, foram ao
menos três vezes por semana durante três meses ensaiando para a gravação deste
projeto. Em algumas ocasiões nos desviávamos do propósito dos ensaios e
fazíamos música a partir do zero. Assim surgiram: 1 de Julho, Sou Parcifal e
Sagrado coração. Programamos tudo no meu Korg 01/w (sintetizador), depois
gravamos voz e violões no Discover, estúdio onde realizamos o The Sonewall
Celebration Concert e o Equilíbrio distante e onde produzi o póstumo O último
solo.
Fale um pouco sobre The Stonewall Celebration Concert (1994),
Equilíbrio distante (1995) e O último solo (1997)... Como era a relação
musical? O que ele queria enfatizar: os arranjos os versos? Pavimentar uma
carreira solo? Renato era o professor de “educação artística”, não
era apenas música, ele enfatizava muito a questão filosófica e cultural
envolvida na criação dos discos. Tudo que há em um álbum, desde a capa até o
mais simples elemento musical que compõe um arranjo, carrega consigo um
significado. A harmonia artística entre esses elementos era o mais importante
para ele. O respeito às regras musicais, à parte técnica da gravação, à
precisão rítmica dos elementos gravados era o meu departamento. Acho que a boa
combinação desses diferentes focos trouxe um bom resultado final para a nossa
parceria artística.
Não acredito que houvesse uma carreira solo, nem vontade de fazer shows sem a
Legião, esses álbuns foram projetos especiais. Havíamos começado a trabalhar na
ideia de uma ópera, ele me deu um livro que seria a base da história, O bom
crioulo (romance de Adolfo Caminha), e alguns CDs de referência para ouvir,
tinha de tudo, de Wagner a Schoemberg, mas, ainda durante as gravações de A
tempestade, ele me ligou dizendo: “A gente vai ter que parar um pouco de
trabalhar agora”, eu respondi: “Eu sei”.
Como foi pegar a estrada como músico de apoio de uma das
principais bandas de rock do país nas turnês V e Descobrimento do Brasil? Até
o último dia de ensaio nos estúdios da EMI, em Botafogo, no Rio, eu não tinha
ideia do tamanho da Legião. Quando chegaram cerca de 35 pessoas para uma
reunião de equipe, foi aí que tive noção de onde exatamente eu estava me
metendo. Todos os shows que participei foram enormes, sempre com estrutura
equivalente aos grandes festivais, eu nunca havia participado de algo com uma
estrutura tão grande para um único artista. Mesmo assim, independentemente do tamanho
do equipamento que estivéssemos usando, não se ouvia nada direito no palco até
o inicio da terceira música, devido à gritaria ensurdecedora do público
enlouquecido. Nunca havia visto nada daquilo, e acho que vai ser difícil
reviver algo do gênero. Só quem esteve lá, nesses shows, sabe do que estou
falando.
Participou também da gravação de A tempestade (1996) e Uma outra
estação (1997). O que diferencia a sonoridade desses discos com os primeiros da
banda, na sua opinião? A Legião foi pegando mais experiência com
gravações no início dos anos 1990, o Dado criou a Rock’it!, fez um ótimo
estúdio e começou a produzir novas bandas, o Renato fez os discos solo, Bonfá
começou produzir bases em casa também e eu já tinha alguma experiência com
estúdios, além disso, eu e Renato ficamos meses trabalhando juntos no
Equilíbrio distante e descobrimos uma forma própria de trabalhar. Foi natural
que a construção de A Tempestade tenha sido um pouco diferente dos álbuns
anteriores em termos de método de trabalho e obviamente a minha presença também
alterou a textura sonora e a instrumentação dos arranjos. O som do piano
acústico passou a ser mais presente na Legião e acabou se tornando uma das
características da base sonora da banda, além dos violões do Renato, os clássicos
dedilhados de guitarra do Dado e o contratempo aberto do Bonfá.
Qual o legado de Renato Russo para a música brasileira? Difícil
mensurar, acho que seu legado vai além da música, da poesia, vai muito além de
mostrar que o rock em português faz sentido. Acho que a obra dele afetou nossa
sociedade positivamente, através das mensagens em sua poesia, tanto no
comportamento, como na ética, na defesa do direito das minorias, na importância
do amor. Ele é uma figura fundamental na história da nossa cultura, vai além da
música.
Você é arranjador, produtor e instrumentista requisitado. Fale dos
seus projetos musicais nesses tempos de pandemia... No momento
estou trabalhando muito com o Pupillo, ex-baterista da Nação Zumbi, ele é
produtor musical, estamos juntos em vários projetos. Estou produzindo também o
primeiro álbum do compositor e guitarrista Pedro Baby, ao lado dele; a cantora
Lina Cosmic, com o produtor Liber Gadelha; o primeiro álbum do compositor
Roberto Basilone, de Santa Catarina, e do compositor Daniel Tendler, do Rio de
Janeiro, além disso, produzo uma cantora jovem incrível chamada Victoria
Valcant e, também, o meu terceiro álbum de sintetizadores, minha antiga paixão.
(*) José Carlos Vieira – Correio Braziliense
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