Em entrevista ao CB.Saúde — parceria do Correio com
a TV Brasília —, a professora e imunologista da Universidade de Brasília (UnB)
Anamélia Bocca alertou para os riscos da situação de abandono vacinal na
campanha contra a covid-19. A especialista explicou, ontem, que tomar a
primeira dose de um imunizante contra a doença, mas não retornar para a segunda
aplicação pode fazer com que o novo coronavírus aprenda como funciona a
resposta imune do organismo e desenvolva novos mecanismos de ataque.
Além disso, a professora destacou que, apesar do
aumento dos casos entre pessoas com menos de 50 anos, é possível perceber queda
das infecções em idosos com mais de 60. Anamélia abordou as supostas
ocorrências, ainda em investigação, de trombose após aplicação da vacina
Covishield — produzida pela empresa sueca AstraZeneca em parceria com a
Universidade de Oxford. Para a especialista, a suspensão do uso desse
imunizante em alguns países não significa que ele não seja eficaz e demonstra a
rigidez dos processos avaliativos e de aprovação das agências regulatórias.
Confira os principais trechos da entrevista concedida à jornalista Carmen
Souza:
A chegada das vacinas contra a covid-19 colocou o
mundo em um novo patamar no combate à pandemia, com ritmos diferentes em cada
país. Como o Brasil está nesse cenário? Se considerarmos todos os países
que começaram o processo de imunização, o Brasil não está nada bem. Vários
deles fizeram trabalhos anteriores, como a reserva de doses e o investimento em
pesquisa. Assim como fizemos com a vacina de Oxford/AstraZeneca, algumas nações
investiram em mais de um imunizante. Obviamente, esses locais tiveram retorno
maior em quantidade de vacinas, conseguindo atender um grande número da
população, e começam a ver os efeitos dessa imunização. É o caso de Israel, que
vacinou mais de 60% dos habitantes com as duas doses e tem percebido queda no
número de pessoas infectadas. A mesma situação pode ser observada nos Estados
Unidos, que, apesar de ter índices menores de pessoas vacinadas porque a
população é muito grande, também estão percebendo diminuição nos casos. Esses
exemplos provam que as vacinas funcionam, mas que a distribuição e o processo
de aplicação demandam logística. Quem se programou melhor está mais avançado no
cenário de vacinação. A Europa, por exemplo, que não tem uma logística tão boa,
tem o número de doses necessárias, mas a aplicação está lenta por causa de
problemas de organização.
Qual sua análise sobre a vacinação no Distrito
Federal? Acho que nós, considerando o baixo número de doses disponíveis,
estamos indo muito bem. Temos uma logística muito boa de aplicação. O entrave é
a quantidade de unidades em estoque. Em relação à segunda dose, o que a
secretaria (de Saúde) fez, de segurar as aplicações, foi muito prudente, porque
temos visto várias capitais sem vacinas para o reforço. Aqui, a pasta diminuiu
o ritmo com a primeira dose, para garantir a segunda à população.
A partir de amanhã, deve começar a vacinação dos
idosos com 64 e 65 anos. Até o próximo mês, conseguiremos fechar a imunização
de todos os idosos com mais de 60 anos? Não é muito minha área de estudo,
mas, por algumas análises que li, até o fim deste mês e início de maio, devemos
fechar o primeiro grupo prioritário e dar início ao de comorbidades.
Pensando no grupo de idosos vacinados, podemos
inferir que houve impacto no sistema de saúde com relação a internações e
mortes? Temos visto no DF duas situações distintas: diminuição do número
de pessoas acima de 60 anos internadas com evolução para óbito, mas em
comparação com os outros grupos. Com as novas variantes, pessoas abaixo de 50
anos têm se infectado mais e apresentado formas mais graves da doença, ocupando
em maior quantidade os hospitais. O fato de haver mais casos neste grupo pode
estar mascarando o número de idosos que têm se recuperado, mas conseguimos ver,
em uma primeira análise, diminuição das pessoas acima de 60 anos contaminadas
com a covid-19.
O Ministério da Saúde calcula que 1,5 milhão de
pessoas não voltaram para receber a segunda dose da vacina. De que forma isso
pode estar relacionado com o surgimento de mutações do vírus? A vacina não
nos blinda da infecção. Muitas pessoas pensam “Agora que estou vacinado, não
preciso mais usar máscara nem continuar com os outros cuidados”. Isso não é
verdade. A vacinação melhora a resposta ao vírus. Uma pessoa não imunizada terá
resposta lenta do sistema imune, o vírus ganha espaço e se prolifera. A
primeira dose da vacina já oferece melhora imunológica, com geração de células
de memória. Com a segunda dose, a resposta será ótima. Ao entrar em contato, a
partir da reação (do reforço da vacina), o vírus não terá tempo de se
proliferar e causar a doença, porque o sistema imune age para eliminá-lo
rapidamente. Com a resposta intermediária gerada apenas com a primeira dose, o
vírus consegue sobreviver e aprende, com a resposta imune, a gerar novas
variantes. Se as pessoas não tomarem as duas doses e, portanto, não tiverem
resposta adequada no organismo, há possibilidade de favorecer as mutações do
vírus, gerando novas variantes — mais graves e com proliferação acentuada em
nosso organismo.
Com essas variações, mesmo uma pessoa vacinada com
as duas doses agora pode não ficar protegida no futuro? Qualquer pessoa
vacinada pode se infectar. Vai depender, porém, das células de memória ativas
desempenharem boa resposta no sistema imunológico. Quando o vírus sofre
mutação, não há alteração completa da estrutura dele. Não passa a existir um
novo micro-organismo. A resposta das duas doses vai reconhecê-lo parcialmente,
como acontece com a (vacina contra a) gripe, em que somos imunizados contra as
variantes do último ano. Contra as mutações que eventualmente aparecerem,
teremos uma resposta parcial, que permitirá a eliminação do vírus do organismo.
Se deixarmos que as variantes circulem com rapidez e aumentem a velocidade de surgimento,
é possível que a vacina fique com cada vez menos eficiência. Creio que teremos
de adaptar os imunizantes contra a covid-19 a cada ano, como acontece com as
vacinas contra a gripe.
Quem tomou a primeira dose e perdeu o prazo da
segunda deve fazer o quê? Deve voltar para a segunda aplicação, não há
problema. Inclusive, no caso da CoronaVac, existem estudos preliminares
mostrando que, até 28 dias depois da primeira dose, os resultados podem ser
melhores do que dentro do prazo de três semanas.
Ana Isabel Mansur – Foto: Ed Alves/CB/D.A.Press – Correio Braziliense